Lavras do Sul, 2 de dezembro de 2040
Evoco o amigo Rubem, a partir de umas cartinhas escritas para os meus netos. Regresso às metáforas, para tentar explicar o inexplicável. Evocarei, mais uma vez, um Pássaro Encantado, ser raro, sensível, que, no tempo em que vós nascestes, contava a história de um “pássaro branco com cauda de plumas fofas como algodão”, que chorava e sentia saudades, que os humanos nem sequer conseguiriam imaginar.
O Rubem havia lido “A poética do devaneio”, do Bachelard, e descoberto poetas que punham palavras nos sentimentos. Apaixonara-se pela poesia de uma gaivota de nome Pessoa, que escreveu “quando te vi, amei-te já muito antes, tornei a achar-te, quando te encontrei”. No já distante ano de 2003, na estante do quarto que foi o lugar onde o vosso pai cresceu e se transformou no maravilhoso ser que vos gerou, coloquei os livros que o Rubem me ofereceu (antes da era do digital, livros eram objetos através dos quais os humanos passavam a sua herança cultural, de geração em geração). Ali permanecem, à espera de que algum professor se deixe possuir pela paixão de os procurar, de os abrir, de os saborear, para que seja acariciado por benfazejas mensagens.
O meu amigo Celso me dizia que “os humanos sempre foram especialistas de si mesmos”. Eram supremacistas, dominaram o planeta e poderiam destruir tudo. A humanização não deveria ter um caráter antropocêntrico, o planeta precisava de todos os seres vivos, não só dos humanos. Mas, atentai neste triste exemplo de crueldade. No contexto de uma Economia predatória, o visom era a terceira maior fonte de exportação da Dinamarca e responsável pela produção de 40% das peles do mundo. A matança de dezessete milhões de visons aconteceu, porque se suspeitava de que os pobres animais poderiam transmitir aos humanos a covid-19.
A título de exemplo, aqui vos deixo notícias e primeira página do dezembro de há vinte anos: “Homem mata esposa com canivete e se entrega à polícia”; M. surge de biquíni em piscina e exibe marca de bronze; sarada, em fotos de biquíni na praia, G. exibe barriga; A. posa nas Maldivas com biquíni cavado e surpreende fãs; D. comemora novo corpo com foto do antes e depois; de biquíni fio-dental, L. ostenta corpão; de top e saia, R. empina bumbum. A modelo deu o que falar na web”.
A Web era fértil em voyeurismo boçalidade e estímulo ao consumo. E a cirurgia plástica crescia entres adolescentes de treze a dezoito anos. Porque a aprendizagem era antropofágica. Não se aprendia o que o outro dizia, aprendia-se o outro, os seus valores. Nas famílias “tradicionais”, se aprendia egoísmo e fundamentalismos, por via do “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Nas escolas “tradicionais”, se aprendia a competitividade negativa e uma bovina obediência. Na sociedade se aprendia libertinagem, frivolidade, o “jeitinho brasileiro”.
A escola deveria primar por sua característica antropoplástica, a arte de plasmar o ser humano. Mas, entre as pequenas corrupções em família e a corrupção que grassava nos órgãos de poder, colhíamos o que havíamos semeado em longos anos de instrucionismo. O sistema educacional estava infetado pela corrupção intelectual e moral.
No dezembro dos idos de vinte, os EUA se preparavam para a explosão de casos de covid-19, porque o “Dia de Ação de Graças” tinha sido fértil em aglomerações e em contágios. As autoridades máximas da saúde instituíam normas e impunham-nas à população. Mas, o ministro da saúde brasileiro contraíra a covid-19. E, os diretores-gerais de saúde portugueses foram colocados em isolamento… tinham sido infetados.
Por: José Pachecho
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