Rio Grande, 3 de dezembro de 2040

Conheci o Júlio nos meus primeiros tempos de Brasil. Nos seus quinze anos, os belos acordes que extraía do seu violão faziam as delícias dos clientes de um barzinho de esquina da Vila Madalena. Já em tenra idade se anunciava génio, exímio violonista. Amigos e fãs auguravam-lhe uma carreira promissora. Até que chegou o tempo dos vestibulares.

Alguns anos depois, reencontrei-o, “ganhando a vida” numa loja de shopping. Conversamos:

“Não gosto deste emprego. Mas o meu pai acha que a vida de músico é condenação à pobreza. E, como eu não consegui concluir o ensino médio…”

“Por que não conseguiste?”

“Porque eu nunca tive cabeça para aprender Matemática e Química”.

De pequenino se torcia o destino. Quantos projetos de vida ficaram encarcerados atrás de grades curriculares?  O currículo “pronto a vestir”, roubava o direito de desenvolver talentos e de realização pessoal. Se o Júlio estava vocacionado para a Música, por que deveria aprender a fazer equações de segundo grau, ou decorar fórmulas? A Matemática e a Química seriam mais importantes do que a Música?

O Júlio aprendera a tocar, pesquisando na Internet. Era um autodidata, que desejava aperfeiçoar a sua arte na universidade. Mas, o vestibular (mesmo com a designação de enem) era instrumento de darwinismo social. No processo de elaboração de uma base curricular, havia disciplinas consideradas “nobres”, o “back to basic”. Por que razão se dava a designação de “Arte” a uma disciplina? Não se deveria considerar as Artes Visuais, ou a Educação Musical, no lugar da disciplina “Artes”? Alguém ouvira falar de currículo subjetivo?

Uma base curricular era construção histórica, reflexo de diferentes concepções de mundo e de ser humano, de influências políticas e de ideologia. Também se apresentava como repositório de pressões corporativas e da indústria do cursinho para vestibular. Dependia de obscuras manobras de associações profissionais, que pugnavam por maior carga horária das respetivas disciplinas, ignorando que a inclusão de mais horas-aula não passava de pedagógica contabilidade.

Acontecia “transbordamento curricular”. Constava que, na câmara dos deputados, transitavam cerca de 250 projetos de lei com propostas de inclusão de novas matérias no currículo oficial. A BNCC estava a precisar de um “enxugamento”, que contemplasse apenas o essencial, um exercício de “homeopatia curricular”. Se a “homeopatia” chegou ao Brasil em 1840 e já era utilizada na Medicina, que também na Educação se administrasse doses mínimas, para evitar intoxicações.

O debate em torno da definição de um currículo único continuava “terra de ninguém”. Do alto das cátedras ao chão das escolas, dos sindicatos às associações patronais, todo mundo emitia opinião. No auge do “debate”, surgiram românticos contrapontos à hegemonia da cartesiana organização em disciplinas. Apontava-se a necessidade de práticas interdisciplinares e transdisciplinares, mas ainda não escutava referências a práticas… indisciplinares. Num desenvolvimento curricular indisciplinar, como se definiria um conjunto de saberes essenciais?

Nunca encontrei alguém que, ao longo da sua vida, tivesse precisado de usar a raíz quadrada. E se precisasse, também não saberia utilizá-la, porque não a teria aprendido. Na prática instrucionista, quase nada se aprendia de útil. Na escola da aula, se matavam talentos e se perdiam vidas. Para que o Júlio pudesse cumprir o seu projeto de vida e ser músico, deveria aprender o que eram mesóclises, piroclásticas, o efeito de Coriolis?

 

 

Por: José Pachecho