São Sepé, 5 de dezembro de 2040

Quando foi matriculado no primeiro ano, o Daniel já sabia ler. Quando o visitei estava a fazer a os trabalhos de casa: “escrever uma frase sobre a ida ao circo”. O Daniel já sabia ler, mas estava atrapalhado. Perguntei por quê. Disse:

“Eu quero escrever que gostei de ver os palhaços”.

Insisti, porque desejava saber a razão pela qual o Daniel não queria escrever tal frase. Respondeu:

“Não escrevo palhaços porque a professora ainda não deu o lh aos meninos!”

Culpa do Daniel, que aprendia mais rapidamente do que o ritmo das aulas da sua professora. Culpa do Daniel, porque não cumpria o calendário estabelecido para… aprender a ler.

Em meados da segunda década deste nosso século, um estudo da OCDE recomendava às autoridades educacionais que abandonassem as políticas burocráticas. Não abandonaram! E um dos pontos fortes do debate da dita reforma curricular portuguesa, era “o tempo de duração de uma aula”.

No decurso de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a carga horária em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelo jegue. Mas o dito colega voltou à carga, perguntou-me se aprovava a alteração do tempo de aula de cinquenta para noventa minutos. Respondi, perguntando:

“Cinquenta minutos, ou noventa minutos, para qual aluno? De qual aluno está a falar? Algum, que você conhece?”

Ficou arrumada a questão, ainda que eu acrescentasse (e ele já não escutasse) que, há mais de cem anos, alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que o “aluno médio” teria, “em média”, uma capacidade de atenção contínua de cerca de cinquenta minutos. Que não era por acaso que as aulas duravam, “em média”, esse tempo. Mas, certas “pesquisas” informavam que as crianças do século XXI tinham uma capacidade de concentração “média” de cerca de seis minutos.

Finalizei a minha resposta, afirmando que a duração da aula era uma falsa questão. O problema consistia em ainda haver aula, fosse de cinquenta, fosse de noventa minutos –esta “aula dupla” era uma dose dupla de tédio.

Expliquei que teríamos de ultrapassar um discurso semeado de abstrações (aluno médio, carga horária etc.) para falar do aluno concreto. Mas, o debate acabou ali, fez-se silêncio – aquilo que era óbvio não carecia de explicação. Portugal e Brasil eram países irmãos também nos absurdos. Em Portugal, a lei estabelecia a idade de matrícula; no Brasil estabelecia a “idade de aprender a ler” e a “idade de corte”. Li num jornal:

“A experiência afirma que o melhor período para aprender a ler é entre os 5 anos e oito meses e os 8 anos”.

E em outro jornal:

“Nenhum aluno poderá ser matriculado, se não tiver completado seis anos até fevereiro. Se fizer o seu aniversário, nem que seja um dia após o limite estabelecido, terá de continuar a educação infantil”.

Imaginava a preocupação de uma mãe prestes a dar à luz. O azar rondava aquele bebé que nascesse “fora do prazo”. Por um dia, arriscar-se-ia a esperar um ano pelo direito à matrícula.

Muitos regulamentos desse tempo roçavam o ridículo! Alguns estados aceitavam matrículas de crianças que perfizessem seis anos até 31 de dezembro. Outros estabeleceram o critério do sexto aniversário até 30 de junho. Disposições legais fixavam o limite em 30 de março. Alguém saberia dizer por quê? Nem eu!

Imenso tempo se perdia em discussões bizantinas. Quando a humanidade já não acreditava que fosse possível deslindar o sexo dos anjos, a administração escolar insistia em determinar “a idade para aprender a ler”, ou “a idade para ingressar no primeiro ano”. Enfim! Que Deus lhes perdoasse!

Por: José Pacheco