Guaporé, 12 de dezembro de 2040
Por que escrever histórias? – perguntareis – Porque as histórias, como a poesia, são uma linguagem do coração. O coração entende-as. E bate mais rápido. Uma história tem o poder de transformar pessoas. Então, contemo-las…
Retirante baiana, a Antônia chegou à grande cidade só com os andrajos que lhe cobriam o magro corpo. Não foi o amor, mas a fome, que a fez parir dez filhos, a juntar aos oito que o seu homem já fizera em outra mulher.
Iria fazer cinquenta anos, mas tinha no rosto as marcas de décadas de provações. Mais de um século decorrido sobre a Lei Áurea, havia na sociedade brasileira cidadãos de cidadania menor, que nada possuíam e a nada aspiravam.
O homem da Antônia sofrera três derrames e caíra na cama para não mais se levantar. A Antônia cuidava-o com o mesmo desvelo que dedicava a um menino, que uma jovem nordestina lhe confiara, antes de se perder nos atalhos da vida e da prostituição.
“O meu menino é como o meu homem, não fala nem consegue andar dois passos, mas eu peço à senhora que o deixe vir para a sua escola. Vai ver que ele ainda assim consegue aprender…”
Comovida, a diretora da escola abraçou a Antônia e a garantiu-lhe que o Edilson seria bem tratado e aprenderia tudo o que pudesse aprender. A Antônia abriu no rosto um sorriso terno e desdentado, e lá se foi de bem com a vida. E eu ali fiquei, num canto da sala, a voz amordaçada pela emoção, incapaz de responder à diretora, quando ela me dirigiu a palavra:
“É como canta o Milton, professor, “há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor”.
Dizia o mestre Agostinho da Silva que não existem só poetas de verso. A ideia de que a pessoa tem de se dizer poeta porque faz verso, não é verdade. Poeta é aquele que cria na vida alguma coisa que na vida não existia. Na minha peregrinação pelo Brasil das escolas, encontrei poesia nos gestos mais simples, aprendia humanidade, deparava com beleza a todo o momento. E, no dia em que conheci a Antônia, aconteceu uma overdose de beleza.
Nos idos de vinte, quando falhava a educação, subia à cena o polícia e o juiz. Mas, num quotidiano violento, eu testemunhava amorosos gestos:
“Não vá por aí, que tem assaltante esperando!
Arrepiei caminho, com um sorriso de agradecimento para o moço que me lançara o aviso. Mais adiante, um menino da rua remexia num caixote de lixo e retirava dele um pedaço de carne suja e infecta. Sacudiu-o, para soltá-lo de pedaços de guardanapo de papel. Quando já abria a boca para engoli-lo, um transeunte foi junto do moço, deu-lhe uma nota de vinte reais e, em silêncio, se afastou.
No mesmo dia, a Tatiane deixou uma mensagem no meu computador:
“O que me move é o amor, pela vida, pelo outro e por acreditar nisto traço meu percurso enquanto educadora na emoção e no sentimento. Não posso basear minha ação pedagógica no sistema falho, devo baseá-la no ato vivo na emoção e na relação que estabeleço a cada dia. Para resgatar este outro que foi julgado, descriminado e rotulado.”
Comenius, na Pampaedia:
“Nosso primeiro desejo é que todos os homens sejam educados plenamente em sua plena humanidade, não apenas um indivíduo, não alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens, reunidos e individualmente, jovens e velhos, ricos e pobres, de nascimento elevado e humilde.”
Nas minhas peregrinações pelo Brasil das escolas, encontrei muita maravilhosa gente, que buscava realizar o desiderato de Comenius. A esperança – aquela que Pandora não deixou que saísse da sua caixa e cuja etimologia nos remete para a fé na bondade da natureza – manifestava-se em discretos gestos de educadores, que nos davam lições de humanidade.
Por: José Pacheco
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