Mato Castelhano, 21 de dezembro de 2040
Todos os avós são contadores de estórias. Por isso, contar-vos-ei as estórias da criação de comunidades, de outros “causos” e projetos. Antes, precisarei falar de lealdade, condição sine qua non de qualquer projeto. Como qualquer outro valor, com gente leal e no exercício da lealdade a aprendi.
Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade, ação ou procedimento de quem é honesto, fiel a compromissos. Se os jovens dos idos de vinte estavam atentos ao exemplo de vida dos adultos e aos valores que eles traduziam, se através do exemplo não fossemos leais, abriríamos espaço para desenvolvimento de contravalores.
Terei de vos contar uma manifestação de deslealdade de que foi vítima a escola a que o vosso avô deu trinta anos de vida. Mais uma vez, metaforicamente, como a contei à Alice, vai para quarenta anos. Não referirei os nomes dos desleais autores, pois ainda estão vivos e já lhes perdoei.
A fama da escola das aves chegou longe. Ainda que muitas outras escolas de voo não acreditassem no novo método de voar, vinham pássaros de toda a Terra, em longas migrações, só para verem se era tal como se contava. Dos olivais aos montados, das serranias aos vales profundos, acorria à escola das aves uma grande diversidade de pássaros e de intenções. Os pássaros que na fala das gaivotas se reviam delas se aproximavam. E, se alguns as desdenhavam, outros se lhes juntavam: o rouxinol com o seu maravilhoso trinado, o melro saltitante, o beija-flor de voo gracioso…
Mas, certo dia, vinda do outro lado do rio, caiu sobre a escola das aves uma praga de maldade. Algumas negrelas urdiram uma sórdida conspiração, parasitaram saberes e imitaram o canto de outros pássaros, para lhes roubar o futuro. As gaivotas deixaram-se enganar pelo seu encantatório canto. Espantaram-se quando as negrelas recusaram elevar a alma à altura do sonho, quando as negrelas decidiram trocar a liberdade pela proteção dos galhos velhos da densa vegetação das margens de charcos e lamaçais.
Por tudo ter sido tão súbito e surpreendente, as gaivotas ficaram indefesas perante os ataques que se seguiram. Aperceberam-se de quão frágeis são os espaços de liberdade. Aves sem cuidados, foram presas fáceis para as traiçoeiras arremetidas de predadores. Os ares ficaram empestados por grifos instigados pelo bando de negrelas, que deixaram atrás do si um rasto de destruição. Não passou muito tempo até que os ventos trouxessem do outro lado do rio ecos de infâmias. Atreveram-se mesmo a publicar falsidades nos jornais da passarada, pois ignoravam que a ignorância não é pecado – pecado é não querer saber.
Não creias, querida Alice, que na História dos pássaros sejam raros episódios tão tristes como o que acabo de narrar. Nem creias tampouco que o mal possa alguma vez triunfar. Na História dos homens, houve um Galileu que foi caluniado e perseguido pela Inquisição, só porque afirmava que a Terra girava em volta do Sol. E houve outro galileu caluniado e perseguido, só porque transgredia por amor e anunciava novos tempos. Porém, até na morte ele triunfou.
Quando vos contar as estórias dos idos de vinte, ireis perceber que a história não se repete, mas que essas estórias também falarão de lealdade e de deslealdades.
O antídoto da deslealdade é a esperança. Tudo o que é justo se ergue das cinzas, como a Fénix. As gaivotas da nossa história continuaram a sobrevoar mares longínquos em busca de novos sóis, rumaram ao sul, animadas da coragem que permite reconstruir ninhos devassados, envolvidas numa verdade tranquila, acima da espuma dos dias e de marés negras.
Por: José Pacheco
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