Veranópolis, 30 de dezembro de 2040
Há muitos anos, na minha terra portuguesa, havia uma árvore, de que não se sabia a origem. Era a “Árvore da Tojela”, quase um ex-libris da vila.
Certo dia, recebemos a visita de uma professora de origem libanesa. Vivia em Portugal, refugiada política, sofrendo por não poder regressar a uma terra assolada por uma guerra fraticida.
Certo dia, dei-lhe “carona” para a escola. Ao passar pelo Largo da Tojela, agarrou o meu braço e pediu que eu parasse o carro. Saiu, correndo, atravessou a rua, se ajoelhou junto da árvore e a abraçou, chorando.
Não saí da viatura. Fiquei a olhar o enternecedor quadro. Pessoas paravam, mudas de surpresa. Parecia que o tempo também havia parado.
Em silêncio, voltou para o carro. Em silêncio, seguimos para a escola. A jovem libanesa levava um sorriso nos lábios.
Alertadas por familiares, que tinham tido ensejo de contemplar a surpreendente cena, as crianças da Ponte me interpelaram. Quiseram saber por que razão aquela “visita” abraçara a árvore.
Ao cabo de uma longa pesquisa, numa entrevista com um botânico, o mistério foi desvendado. Aquela árvore era um exemplar único em Portugal. Árvores da mesma espécie só existiam no Líbano. Provavelmente, uma ave migradora trouxera a semente aconchegada nas suas patas e ali a deixara.
Árvores e pássaros, como o guacho, encerram mistérios, que podem ser desvendados. O guacho é um pássaro que constrói o seu ninho suspenso de um ramo. Perplexo face à mestria exigida pela construção, o Pássaro Encantado interrogava-se: como colocaria o guacho o primeiro graveto do seu ninho?
O guacho não perdera a memória do tempo de um viver em comum, a memória de um tempo sem resquícios de rivalidades, que assegurassem a exclusiva posse de um território, ou arrastassem pássaros para tentações de subjugação dos seres nele confinados. Vivia para construir ninhos e sabia que, para instalar os frágeis alicerces de uma estrutura, que serviria de berço à sua prole, para enlaçar o segundo dos gravetos no ramo pendente sobre o abismo, precisaria de dois bicos solidários segurando o primeiro.
Ao construir ninhos suspensos sobre as águas, o guacho dava lições de arquitetura. Possuía os saberes dos construtores de pontes, sabia que toda a ponte tem dois sentidos e que algumas pontes estabelecem a transição entre o que é e o porvir.
Nos idos de vinte, a solidão era, muitas vezes, o destino de pássaros a quem calhava por sina o conhecimento e a bondade. E poder-se-ia chamar instintivo ao ato paciente e fraterno de juntar um galho a outro galho, até se completar um ninho. Eu diria ser mais um ato religioso – Que mania a dos humanos seres a de considerar não ser da natureza dos pássaros o re-ligare!
Nas manhãs dos idos de vinte, pássaros de todos os tamanhos e cores vinham em revoada pousar nas árvores do Jardim do Éden. Quando jovens pássaros caíam do pau-brasil, eu os devolvia ao ninho protetor. Até ao dia em que o pau-brasil, sem sofrer vento ou tempestade, abriu ao meio e arrastou os ninhos na sua queda.
Um casal de João-de-Barro fizera o seu ninho num ipê amarelo. Passavam grande parte do tempo em terra, num andar pausado e pequenas corridas. Cantavam juntos, à entrada do ninho, agitando suas asas. Até ao dia em que, sem razão aparente, o ipê se abateu sobre outras árvores, rasgado ao meio.
Um dia, talvez vos conte a estória de árvores, que eu amava e que a uma maldade oculta destruiu. O que vos quero dizer é que, nos últimos dias de 2020, fotografei um rebento de ipê, crescendo ao lado do resto de um tronco, do que restava do ipê destruído. Um novo ipê nascia. “A vida não para…”
Por: José Pacheco
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