Algures, 1 de fevereiro de 2041
Estávamos no mês de março de 2010. Convidaram-me para participar em dois painéis da Conferência Internacional de Cidades Inovadoras. Apresentavam-me como “um especialista em educação, que defende formação que permite ao jovem gerar sociedade ideal” (sic). Digamos que era exagerada a expectativa. que me senti em dificuldade para corresponder. Mas, tive ensejo de repensar conceitos de “formação” e de “sociedade ideal”.
No decurso do evento, dispus do privilégio de estar numa mesa, ao lado de alguém que muito admiro: o Augusto Franco. E de, na Sala VIP, conversar com gente como Fritjof Capra. Muito aprendi nesses dias!
Para a Mesa “Comunidades de Aprendizagem em Redes – Arranjos Educativos Locais”, preparei um “guião de conversa”. Eu não deitaria discurso, perguntaria ao público o que queria saber, mas planejava as minhas intervenções. Sem me aperceber, enquanto rascunhava um texto, esboçava um novo conceito: o de “círculo de vizinhança”.
Isso aconteceu há trinta anos e os vídeos postos na Internet, contendo o essencial das intervenções, já desapareceram. Por isso me vejo na necessidade de vos falar do conceito e da sua operacionalização. Antes, transcrevo excertos de notícias sobre a Conferência. Citavam partes da minha intervenção:
“Nosso modelo (o da Ponte) é baseado em três grandes valores: a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade. Temos que ensinar valores e dar uma formação que permita às crianças e jovens serem eles próprios geradores de um outro tipo de sociedade, mais solidária”.
Mas, uma das notícias acrescentava que eu dissera que:
“As crianças têm que estar preparadas para competir, para se enquadrar no contexto da sociedade atual, que é imperfeita, competitiva e desumana. Não podemos criar cidadãos desajustados em relação às regras do mercado e de convivência social”.
Não me recordo de ter dito tal coisa, pelo menos, desse modo. Mas, esse era interpretação, um mal menor. Mais grave era a apropriação indevida de conceitos e práticas alheias. Assistíamos, por exemplo, à comercialização de dispositivos criados na Escola da Ponte, sem que a escola os tivesse cedido, ou autorizado a sua utilização. A propriedade intelectual era desrespeitada, quando empresas do digital vendiam “comunidades de aprendizagem”, que de comunidade nada tinham. E o mesmo aconteceu com o “círculo de vizinhança”.
Elaborei a proposta a partir da minha dissertação sobre o conceito e a prática de “círculo de estudos”. Quando uma universidade norte-americana quis fazer a tradução para inglês, apercebi-me de que essa fora a primeira publicação sobre o assunto. A proposta de “Arranjos Educativos Locais (AEL)“, do meu amigo Augusto, foi outra fonte de inspiração, para a construção do conceito. Assim ele definia os AEL:
“São conjuntos constituídos por pessoas, que se agrupam criando ambientes favoráveis às interações educativas, para o desenvolvimento local – tanto do território, quanto dos sujeitos que nele habitam”.
O amigo Augusto dizia que não queria falar de Escola, mas era de Escola que ele falava:
“Num AEL, não há um currículo único e pré-determinado, mas sim agendas de aprendizagem, que são construídas coletivamente (…) implica considerar as características próprias de cada território, as redes sociais, aproveitando as oportunidades educativas e respeitando as dificuldades que nele se apresentam”.
O Augusto estava muito à frente do seu tempo. e sofreu as consequências do seu pioneirismo. Disso e dos “círculos de vizinhança” vos falarei em próxima cartinha.
Por: José Pacheco
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