Algures, em 10 de fevereiro de 2041
O Jean Vigo realizou um longa-metragem, que tinha por subtítulo “Zero em Comportamento”. Nele, o jogo entre autonomia e heteronomia se traduzia em inesquecíveis cenas. Acaso assistissem ao filme, muitos professores não lamentariam comportamentos heterônomos dos seus alunos. Certamente, reconheceriam não serem profissionais autónomos, pois, como é sabido, ninguém dá o que não possui, nenhum professor transmite aquilo que não é.
A autonomia é uma utopia realizável. Se buscarmos num dicionário o termo “autonomia”, veremos que ele tem origem no grego antigo e significa “independência”. No dicionário da Língua Portuguesa, o termo é definido do seguinte modo: “faculdade de se governar por si mesmo”. Por sua vez, Emanuel Kant postulava que a vontade é autónoma por se determinar a si própria. Tendo em consideração outras vontades, presumo que a autonomia seja exercida no contexto de uma relação… com os outros.
Nos idos de vinte, seria indispensável alterar a organização das escolas, interrogar práticas educativas dominantes. Seria urgente interferir humanamente no íntimo das comunidades, questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados.
Nos projetos que ajudei a criar, acolhíamos jovens vindos de escolas que os rejeitaram. Para que esses alunos não interiorizassem incapacidades, para que não se vissem negativamente como alunos e como más pessoas, proporcionamos-lhes experiências que lhe permitiram ganhar consciência de si como ser social-com-os-outros, serem autônomos.
Os alunos aprendiam, servindo-se de dispositivos de relação. E os professores estavam, atentos, disponíveis. Com o apoio de tutores, os jovens definiam regras e as faziam cumprir, o que lhes permitia serem dignos do exercício quotidiano de uma liberdade na responsabilidade.
A gestão autónoma de tempos e espaços em que o aluno construía o currículo subjetivo estava intimamente ligada ao exercício de cidadania. Aprendia-se cidadania no exercício da cidadania, pois buscávamos uma escola de cidadãos indispensável ao entendimento e à prática da democracia. Procurávamos, no mais ínfimo pormenor da relação com as famílias a autoregulação da aprendizagem. Acolhíamos os pais dos alunos a qualquer hora de qualquer dia, sempre que éramos solicitados. Juntando a educação escolar à familiar e social, formávamos o cidadão democrático e participativo, o cidadão sensível e solidário, o cidadão fraterno e tolerante.
Cada criança agia como participante solidário de um projeto comum. Certo dia, propuseram aos professores a constituição de uma assembleia. Por aí passava a participação das crianças na organização interna da escola. Elas sabiam que a assembleia era “uma coisa importante”, que “os alunos e os professores reuniam e discutiam juntos os problemas da escola”, que “aprendiam a respeitar regras, a se respeitarem uns aos outros e a decidir o que era melhor para todos”.
A comunidade detinha a maioria de representantes no órgão da direção da escola e os jovens acompanhavam os pais em reuniões de adultos, fazendo-se ouvir, dando lições de autodisciplina.
As crianças não entendiam a indisciplina do gritar mais alto que o próximo, como acontecia nos debates entre políticos. Na sua assembleia semanal erguiam o braço, quando pretendiam intervir. Crianças de seis, sete anos, sabiam falar e calar, propor e acatar decisões. Eram capazes de expor conflitos, com serenidade. E de, serenamente, para eles encontrar soluções.
Nesse tempo não se falava de sociocracia. Praticava-se.
Por: José Pacheco
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