Praia do Taípe, 7 de março de 2041

Houve um tempo em que era frequente escutar esta exclamação:

“Eu não sou da educação. Não fiz Pedagogia!”

Eu respondia:

“Graças a Deus!”

Não que eu tivesse qualquer ponta de animosidade relativamente aos pedagogos. Respeitava-os e até estudava alguns deles. O que me surpreendia era o fato de a formação pedagógica de então acontecer, na maioria dos cursos, virtualmente. E que o curso prevalecesse sobre outras modalidades de formação. Acresce que a metodologia utilizada era, em geral, a mesma de há cem anos. 

O semestre já ia adiantado, mas as aulas de História da Pedagogia não desencalhavam da Antiguidade Clássica. A sebenta ia até ao Platão, mas a feminina intuição da Brígida guiava-me nas surtidas à biblioteca (que era mais um emaranhado de livros e teias de aranha), por atalhos de índices e bibliografias, até à exata página ou capítulo.

Numa errância sem fim, bisbilhotávamos armários, passávamos as estantes a pente fino, em busca de novidades. Porém, a mão censória há muito dera sumiço a tudo o que fosse passível de afetar as mentes cândidas dos futuros professores. Até que, num fim de tarde de um abril, se foi toda a gente embora e nós ficámos fechados na Escola do Magistério (já estou a ver os espíritos mais lúgubres congeminando aventuras, mas saibam os maliciosos que nunca a nossa relação confundiu a comunhão intelectual com a tentação de partilharmos algo mais).

Ao fundo de um armário de que se perdera a chave, encontrámos uns livrinhos que um apiedado censor teria poupado à devassa. Vagabundeando por páginas amarelecidas, ficámos a saber os saberes que nas aulas nos ocultavam. Convivemos com personagens até então desconhecidos: Faria de Vasconcelos, Ferrer, Montessori, Kilpatrick… Horas a fio, devorámos as palavras dos avatares de uma “Educação Nova”, que sobreviveu confinada a um conjunto restrito de experiências e que, no nosso tempo do Magistério (e muito para além do contexto histórico em que emergiram!) se mantinha atual.

Apercebemo-nos de que os nossos mestres se esforçavam por nos fazer crer que a intenção libertadora da Educação Nova não passava de uma utopia irrealizável. De posteriores surtidas ficou-nos a paixão por Erasmus e Fénelon, através dos quais iríamos chegar ao convívio de proscritos como Elise Michel ou Proudhon.

Enquanto não se esgotava a pilha da lanterna, vasculhávamos febrilmente os armários empoeirados, tropeçávamos num Rosseau – que um dos nossos zelosos mestres cognominava de “espírito pérfido” – descobrindo que não teria sido o Emílio o inspirador direto da Educação Nova, dado que, pelas nossas contas, entre o filósofo e o início do movimento mediaria mais de um século. Ainda que, depois de feitas as contas – e nós, professores primários à antiga, que bem sabíamos fazer contas! – concluiríamos, ao cabo de muitas horas de furtiva leitura subtraídas às aulas de Legislação, de Didática A e de Didática B, que o Rosseau, que ficara a levedar cem anos, viria a ser recuperado nos primórdios do movimento da “Educação Nova”, que tínhamos descoberto há alguns meses.

Quem cursava Pedagogia, nos idos de vinte, ficava tolhido de mudança. Não partia daquilo que era para ser algo mais. Debaixo do Sol, não havia coisas novas, mas feitas de uma nova maneira: “non nova, sed nove”. Tudo se transformava, assumia diferentes contornos. Só os cursos de Pedagogia se mantinham como um barco à deriva, encalhado à entrada para um porto de promessas. Havia quem continuasse a consultar velhas cartas de marear, indiferente ao impacto das ondas que destroçavam o casco enferrujado.

Por: José Pacheco