Campos de Goytacazes, 14 de fevereiro de 2041

O Álvaro nasceu “branco quase preto”. Aos sete anos, a piedosa senhora a quem servia de criado quis ensinar-lhe o catecismo. Foi assim que o Álvaro aprendeu as primeiras letras. Mas os seus companheiros de infância não lograram ir à escola. Quis a sorte e a herança escravagista que viessem ao mundo pobres e sem condição de estudar.

O moço era esperto, tinha queda para o estudo e era o orgulho da sinhá, que não se cansava de mostrar às amigas as notas obtidas pelo Álvaro: dez em tudo! Porém, se libertara a mente, o corpo não se libertara do restrito território, no interior mais interior do mundo rural. Após muitas tentativas de emancipação, foi rotulado de ingrato e expulso da fazenda. Errou campos e estradas, serviu a outros senhores Como diria o Adoniram no seu “Tiro ao Álvaro”, apanhou mais flechada que o mártir Sebastião…

Após alguns anos de via-sacra, amealhou proventos suficientes para estudar à noite. Entrou na universidade, já adulto feito fez-se professor. Muito aprendi com ele!

O Álvaro era um romântico da educação e um conspirador. Não se conformava com o estatuto de menoridade profissional que lhe era imposto. Juntara-se a outros “românticos conspiradores”, progredira para a organização de um núcleo de projeto e, por volta de fevereiro de 2021, já se inseria numa turma-piloto. Dizia ser “mais de quebrar do que de torcer”. E, criticamente, lamentava desistências de companheiros de jornada:

“A culpa é nossa. Se nos olham como uns coitados, nós agimos como uns coitados”.

Não aspirava ao destino dos praticistas, que acreditavam que a pedagogia era apenas arte e uma questão de jeito. Mas também não queria acabar os seus dias anafado e solitário, fechado num gabinete, ao fundo de um corredor de uma universidade, como acontecia aos teóricos que criam ser a pedagogia apenas uma ciência oculta. Muito menos desejava o destino daqueles que, teorizando teorias, que teóricos produziram sobre teorias de outros teóricos, negavam à pedagogia o estatuto de ciência.

O Álvaro ficava perplexo perante a perplexidade de outros professores, que, à míngua de entendimento, o criticavam. Confessava ficar magoado com as flechadas que deles recebia. Dizia estar decepcionado com a sua escola, onde nada se criava e tudo se copiava. Mas não desistia de recriar. E como era maravilhoso aquilo que fazia com as suas crianças, ignorado, como muitos outros professores “diferentes”.

Nos idos de vinte, o Brasil via surgir e desaparecer excelentes projetos. Os protagonistas de que o Álvaro descendia – Eurípedes, Nilde, Agostinho, Nise, Lauro e tantos outros! – se foram, sem honra nem glória, sem qualquer proveito para a educação e para a nação. Esses projetos raramente foram avaliados. Se o foram, as conclusões dos estudos de caso e de outros trabalhos académicos ainda jazem no fundo de um qualquer arquivo universitário, sem serventia.

As escolas mantinham-se ensimesmadas, rotinadas na ensinagem. Os professores mantinham-se dependentes de estéreis e despropositadas medidas de política educacional, ou ancorados na ilusão da última moda pedagógica.

Escutei este desabafo de uma professora, consumidora compulsiva de compêndios de auto ajuda pedagógica e frequentadora assídua de congressos: “A gente já pôs os alunos em filas, em círculo, em grupo. Agora, vamos ter de voltar a pô-los em filas? Ou vou vender banana?”

À semelhança do Álvaro, de tanto levar flechada, a professora “não tinha mais onde furar”.

A estória não termina aqui e tem um fim feliz. Numa próxima cartinha vo-la contarei. Prometo.

Por: José Pacheco