Ponte da Barca, 16 de abril de 2041

Ao longo de mais de meio século, foram milhares as mensagens recebidas de educadores, relatando situações como aquela que a Mercedes descreveu, nos idos de vinte:

Bom dia, Zé! Envio aqui algumas aflições, relatos do que vivi, desde o início do ano de 2021, na escola em que eu trabalho. Solicito que as informações mantenham o anonimato, pois a intenção não é prejudicar pessoalmente ninguém e sim compartilhar os tempos difíceis que ainda vivemos. Vamos lá!

Em junho de 2020, ao fazer o “aprender em comunidade” e me aprofundar sobre metodologias como a tutoria, iniciei um núcleo com vários educadores da rede pública. Eu informei a Direção da escola que, ao retornar do recesso escolar, eu não iria mais utilizar as aulas. Iria criar tutorias. A Direção disse que não era assim. Que a minha intenção era boa, mas que tudo precisava passar por eles, antes de ser feita qualquer coisa na escola. 

Entendi que era uma questão de poder, de controle. Concordei e disse que, a partir de então, informaria a Direção e convidava a diretor para participar nas reuniões do núcleo de projeto. Passei a informar. Contudo, muitas coisas foram negadas, sem qualquer fundamento legal ou científico. Adoeci, me afastei do trabalho por motivos de saúde. Fiquei de licença e afastada de tudo que envolvia a escola.

Quando retornei, a proposta apresentada pela escola foi de que os professores atuassem em duplas a fim de facilitar o contato com as famílias. Eu fiquei na equipe da turma do 3º ano. De início, achei fantástico e planejamos os encontros de acolhimento às famílias, um planejamento incrível para as semanas seguintes. Saímos do nosso encontro super motivadas. E veio outro “não”: 

“Vocês não vão fazer isso desse jeito. O acolhimento será feito apenas pelos professores regentes”. 

Sou professora regente, mas a diretora me proibiu do contato com as famílias. Disse que a pedagoga era a única responsável pela turma. Não houve acolhimento. Os alunos foram diretos para as malditas “atividades”! E eu fiquei sem conhecer os estudantes e suas famílias. 

Em março fui informada sobre quais seriam as minhas turmas. Isso mesmo, em março. E chegou a informação de que, a partir de uma data específica, poderíamos começar o projeto com as crianças. A data chegou. A “autorização”, não. 

Comuniquei à Direção que eles estavam me impedindo de trabalhar e que isso era algo muito dolorido para mim. Eu já não aguentava mais ficar sem ter contato com os estudantes e procurei uma forma de não quebrar as “leis” estabelecidas pela Direção. Criei um formulário simples sobre a disciplina que leciono, enviei para as professoras “responsáveis” pela turma e pedi que mandassem aos estudantes. 

A Direção mandou que as professoras apagassem a mensagem dos grupos, pois isso não foi autorizado pela Direção. As professoras vieram se explicar para mim de um jeito “sem graça”. Perguntei: Por quê? A resposta foi: “O planejamento das atividades precisa passar pela Direção”. E eu me pergunto: Vão planejar o quê? Para quem? 

Eu não estava no sistema operacional. Estava sem acesso aos grupos de WhatsApp e às plataformas de ensino remoto. Enquanto isso, os professores faziam aulas online e os grupos de WhatsApp seguiam cheios de atividades fotografadas dos cadernos das professoras.” 

A quantidade de mensagens contendo depoimentos semelhantes ao da Mercedes daria para escrever livros de encher uma estante inteira. Nas escolas dos idos de vinte, lideranças tóxicas destruíam projetos. Os seus autores adoeciam. Na fila de espera da psiquiatria os professores eram maioria.

 

Por: José Pacheco