Tavira, 29 de abril de 2041
Era tal e qual a Alice dissera, “mais um projetinho, para que tudo ficasse na mesma”. Ela já tinha decidido “não contribuir para esse peditório” (Alice dixit). Só queria que “eu lhe explicasse coisas da avaliação”.
Dei por mim a compadecer-me da angústia da Alice. Fui adiantando que definir “critérios de avaliação” não é o mesmo que ordenar “critérios de classificação”, que a avaliação é um conceito mais vasto do que o de classificação, que a avaliação procura a posição do indivíduo relativamente a ele próprio, a objetivos e, por vezes, a um grupo, para identificar dificuldades, apontar soluções, para regular e melhorar a aprendizagem, enquanto que a classificação determina a posição do indivíduo para o comparar com uma norma estabelecida, ou com posições obtidas por outros indivíduos. E por aí adiante.
E nem a macei com o explicar da distinção entre grandezas qualitativas e grandezas quantitativas, entre variáveis discretas e variáveis contínuas, como se impunha para uma cabal distinção entre escalas.
“Pois, pois, está bem, mas o que eu quero é orientação para fazer os critérios. Quando posso dar um 2 ou um 3” – interrompeu a Alice, mandando às malvas o meu arengar.
A Alice sinonimizava avaliação e classificação, confundia rigor com raciocínio quantitativo. Estrategicamente, recuei o discurso para o registo do menor esforço: Na avaliação sumativa, a Alice não precisava quantificar e, dado que os juízos sumativos assentavam em critérios para cada dimensão curricular, ela poderia fazer avaliação e não atribuir uma classificação.
“Está bem, Zé, és capaz de ter razão, mas o que é que eu vou apresentar aos meus colegas, na reunião? Eles não são complicados como tu!”
“Diz-me o que queres dizer com o “ser complicado.”
“Tu sabes o que eu quero dizer. Eles só querem saber como hão-de dar as notas. Não se preocupam com essas coisas.”
Não dei réplica às ”coisas”. Fiz-me sonso e contra-ataquei:
“Diz-me lá de que dados dispõem os teus colegas, para poderem dar as notas.” “Temos as notas dos testes e mais algumas coisas.”
Como voltávamos às “coisas”, quis saber quais, mas a Alice titubeou, terminando a não-explicitação das “coisas” num ato de contrição:
“Eu sei que sou uma chata, mas é como se cortássemos o programa às fatias e depois as puséssemos no computador…Pode estar mal, mas…”
Poupei-a ao arrependimento e reatei o diálogo:
“E quantos testes fizeste neste período?”
“Só dois, porque o Conselho Executivo diz que não há dinheiro para mais xerox.”
Se quiserdes, vos relatarei a continuação dessa conversa.
Dias depois, a Alice deu-me uma novidade. A sua escola iria participar no chamado projeto de “autonomia e flexibilidade curricular”. Remeteu-me para a leitura de uma portaria, que continha boas intenções, logo anuladas por hábeis regulamentadores. Se não, vede:
O artigo 3.º era explícito, referia que o desenvolvimento da autonomia e flexibilidade curricular se subordinava a princípios consagrados em dois decretos, bem como aos princípios orientadores inscritos no regime de autonomia, administração e gestão, “designadamente no que diz respeito ao primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa e à possibilidade de adoção de soluções organizativas diversas no quadro das opções pedagógicas e curriculares de cada escola.”
Lestes bem: primado dos critérios de natureza pedagógica. Não os encontrei no restante texto da portaria. Talvez pudéssemos acreditar nas boas intenções de secretários e ministros, mas nunca confiar na boa-fé dos burocratas.
Por: José Pacheco
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