Tavira, no Primeiro de maio de 2041
Creio que continua a fazer sentido comemorar esta data e vos falar da humanização do trabalho do professor, bem como do lado lunar da profissão.
De visita a uma escola, reparei que a horta estava abandonada, tudo seco, só com ervas daninhas. Quis saber por quê.
“O projeto da horta acabou, porque o professor que o fez foi para outra escola e levou o projeto com ele.”
“Mas, por que foi embora?”
“Ele era um rapaz muito esquisito. Não dava aula, como todo mundo faz. Não obedecia às ordens da senhora diretora. E até meteu os pais na escola. O pai do Abel, por exemplo, que não é educador, que é lavrador, chegou a cuidar da horta.”
Observei que os pais não passavam da portaria da escola. O professor “esquisito”… levara o projeto com ele.
Sempre que me perguntavam por que “abrimos a escola à comunidade”, por que razão a escola não tinha diretor, eu respondia:
“Nós não abrimos a escola à comunidade. A escola é da comunidade. E, se não temos diretor, é porque somos todos diretores, e eu sou um trabalhador da educação ao serviço de uma comunidade, num projeto que a comunidade construiu.”
Quando o Armindo, a Clara, o Augusto, a Henriqueta, o Barros e outros pais e mães de alunos assumiram responsabilidades na Associação de Pais, eu assumi o estatuto de professor “esquisito”. Decorria o ano de 1976. Sem professores que quisessem “Fazer a Ponte”, a Ponte começou a ser feita por pais e por um professor “esquisito”.
Vinte anos depois, a Escola da Ponte recebia o Primeiro Prémio do Concurso Experiências Inovadoras no Ensino. Trinta anos depois, o Presidente da República me fez comendador da Ordem da Instrução Pública. Entreguei o galardão à Escola da Ponte. Quem merecia homenagem não era eu, era a comunidade constituída, a começar pelos pais.
Por me posicionar, mesmo quando já aposentado, ao lado dos pais e da comunidade, fui alvo de críticas, ganhei inimigos, perdi amigos. A perda de amigos é irreparável, algo doloroso. Sobretudo, quando se crê que esses amigos conosco partilham valores e práticas.
No distante abril de 2021, numa viagem a Portugal, pretendia dialogar com amigos de longa data, pessoas que eu muito estimava. O tempo havia operado desgaste afetivo. Eles optaram por uma carreira no ensino “superior”, produzindo teoria jamais posta em prática. Eu optara por ficar no chão da escola de ensino “inferior”, testando teorias, para que acontecesse aprendizagem “superior”. E os caminhos divergentes, paralelos, dificilmente se encontram.
No decorrer de “palestras”, perguntavam se eu conhecia fulano e beltrana e “se concordava com eles”. Eu respondia que os conhecia, que os considerava amigos, mas discordava de certas práticas. Ambos discorriam sobre transição paradigmática, mas contribuíam para legitimar a manutenção do paradigma da instrução, ainda que disfarçado de “flexibilizações” e pseudo-autonomias.
No “diz-se que disse”, fofoqueiros brasileiros e intriguistas portugueses agiam na sombra. Eu recusava acreditar naquilo que me diziam, mas havia quem acreditasse. E até quem provocasse assassinato de caráter.
Voltei à escola por desejo de pais leais ao projeto e conscientes da necessidade de o relançar. A Ponte estava ilhada em terra estranha. Precisaria de ressurgir no chão inicial. Sem justificação, a não ser a do uso indevido de poder, se tentou impedir que a Ponte continuasse a inovar. Quando afirmei a necessidade de criar uma turma-piloto, amigos viraram obstáculos. E, se eu havia sido para eles “uma referência”, eu virara “um problema”.
Tristes memórias de um professor… “esquisito”.
Por: José Pacheco
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