São Teotónio, 12 de maio de 2041
No decurso de mais de meio século de projetos, identifiquei sete obstáculos à mudança. Hoje, vos falarei de dois.
Quando me perguntavam qual era o maior obstáculo à mudança, eu respondia:
“O maior obstáculo sou eu.”
Perante a surpresa dos meus interlocutores, eu explicitava a resposta. O maior obstáculo era a cultura profissional herdada de muitos anos de sala de aula. O maior obstáculo era eu e professores, que tinham “morrido” profissionalmente. Tinham sido formatados, industriados para manter o modelo de ensinagem.
A reelaboração cultural por que passei foi custosa e com momentos de constrangimento. Nunca se completou, porque muitos outros obstáculos surgiram após o processo de “conversão”. Sentia que tinha muitos amigos, mas que haviam falecido: Freinet, Montessori, Anísio…
Pais e mães “vivos” me ajudaram a não “morrer”. Pedi-lhes que procurassem professores que ainda não tivessem “morrido”.
Em 2010, professores que eu considerava “vivos” cederam perante a prepotência do poder público. Um “ainda vivo”, comentou:
“Eles obedecem, porque não querem perder o emprego”.
O Alexandre o dissera nos seus versos:
“Perfilados de medo, agradecemos o medo que nos salva da loucura / decisão e coragem valem menos e a vida sem viver é mais segura”.
Sendo o ato educar feito de amor, cada vez mais, amava aquilo que fazia. Sendo ato de coragem, renovava a coragem no dia a dia. Mas, senti medo, quando me omiti, quando não denunciei a “morte”. Quando critiquei, aliados se transformaram em obstáculos. Alguns viraram inimigos.
Quando professor num curso de pedagogia, deparei com novo obstáculo. Futuros professores, já “moribundos” reagiram às minhas perguntas.
“O que quereis saber?”
“Nunca ninguém nos perguntou isso” – disseram – “Aqui, o professor entra na sala e dá aula, passa um power point e lê. Lê o que Piaget disse, por exemplo”.
“Vós sois analfabetos? Não sabeis ler?” – retorqui – “Não sabeis pesquisar? Por que ouvir papaguear citações, se podeis ler livros inteiros? E, se os podeis ler numa biblioteca, na Internet, na vossa casa, por que vindes à faculdade?
Aqueles futuros professores “mortos” estavam viciados em aula, queriam que eu “desse aula”. Não dei. Ajudei-os a reaprender a ser professor.
Outro obstáculo quase me custou a vida. Com desgosto, entendi que, se o maior aliado de um professor era outro professor, o maior inimigo de um professor era outro professor.
Sendo querido pelas famílias dos meus alunos e com fama de bom professor, sofri perseguição, fui vítima de um boato lançado por uma professora da minha escola. Ela fez constar que eu havia posto duas crianças nuas, simulando o ato sexual, para explicar como nasciam os bebês. Tal e qual!
Alguns pais acreditaram e tentaram matar-me. Valeu-me o testemunho de uma aluna, a Margarida. Numa reunião de esclarecimento, a criança afirmou perante todos que tudo não passara de um boato, de maldade humana. O professor nada fizera de mal. A reunião terminou com os pais pedindo desculpa. Mas, o boato poderia ter redundado em tragédia.
Decorridos muitos anos, lancei um dos meus livros em outra escola, que eu havia ajudado a transformar: a da Ponte. Perguntava o nome das pessoas, para personalizar os autógrafos. Quando uma dessas pessoas disse chamar-se Margarida, enquanto escrevia a dedicatória, comentei:
“Muitos anos atrás, tive uma aluna com esse nome. Foi ela quem me salvou a vida, numa situação delicada.”
“Professor, olhe para mim. Não me reconhece? Sou a Margarida. Não venho só comprar o livro. Venho matricular o meu filho na sua escola”.
Por: José Pacheco
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