Ourém, 27 de maio de 2041
Nos idos de vinte, a minha amiga Paula porfiava na tentativa de encontrar uma escola que não maltratasse o seu filho. E quis conhecer a Escola da Ponte. Rumamos à terra onde, pela primeira vez, a proposta da Escola Nova se concretizara numa escola pública.
No novo prédio da escola, fomos bem recebidos. Conversámos com velhos e novos protagonistas do projeto. À tarde, fomos até ao bairro da Ponte, lugar onde um professor e alguns pais conceberam o projeto “Fazer a Ponte”.
Nas décadas de oitenta e noventa, aquele que creio ter sido o único prédio de escola portuguesa de “área aberta”, uma “incubadora” de novas práticas, estava votado ao abandono. Em 2021, nele coabitavam duas associações: a Associação dos Reformados de Vila das Aves e a Associação de Pais da Escola da Ponte.
Na cartinha de ontem, falei-vos de Ovide Decroly e de Justino Viana. No Portugal do tempo da Primeira República, foi forte o impacto das obras dos pedagogos escolanovistas. E, nos primórdios do “Fazer a Ponte”, neles nos inspiramos.
Na década de setenta, apercebemo-nos de que a maioria dos professores ignorava a existência de Adolfo Lima, de Faria de Vasconcelos, de António Sérgio e de muitos egrégios mestres lusitanos, que nos legaram valioso espólio. Nas escolas dos idos de vinte, os dadores de aulas continuavam a morrer, profissionalmente, aos vinte, mas só eram enterrados aos setenta. Talvez por essa razão, a escassos dias da interrupção de atividade letiva, numa sala dos professores, se escutasse este desabafo:
“Ainda agora o ano começou e já estou farta! Pelos cabelos! Ainda bem que vem aí mais uma “pausa pedagógica”. Já marquei quarto no Algarve”.
Como muitos outros professores desse tempo, essa professora confundia “pausa pedagógica” com “menopausa pedagógica”.
Na televisão, a filha de Viana de Lemos estava sendo entrevistada e citava nomes de personalidades com os quais o seu pai mantivera contacto: Ferrière, Decroly, Montessori, Freinet.
“Alto! Alto!” – atalhou o entrevistador – “Não conheço. Nem os telespectadores, certamente, lá em casa! Esse tal Freinet, quem é?”
Ela explicou que “não era”, que já tinha sido. Falou sobre a classe cooperativa e a “imprensa Freinet”.
“Mas, isso é muito arrojado! Em que altura foi isso?
“O Freinet, nos anos vinte. Eu, nos anos quarenta” – respondeu a professora aposentada, sublinhando que na sua escola de formação – que seria fechada pela ditadura, na década de 1930 – tinha adquirido conhecimentos que lhe permitiam melhorar a sua prática profissional.
“Mas é extraordinário!” – enfatizava o entrevistador – “Como se fazia um trabalho tão bom nesse tempo? É preciso ver que o povo estava no obscurantismo”.
“Estava e está!” – rematou a idosa e sábia mestra.
Querida Alice, nos idos de vinte, a caminho de Vila das Aves, passamos por Coimbra. Nessa universidade, te preparavas para vir a ser a excelente psicóloga que és. Acompanhado por ti e pela Paula, conversei com educadores. Entre eles, a Graça. Em 2003, ela fizera parte da Comissão de Avaliação Externa da Ponte e fez questão de realçar a excelente qualidade do projeto.
A Ponte continuava a ser uma ilha de excelência. À sua volta, espreitavam múltiplos perigos. Precisaria de novo impulso, para que permanecesse na rota da inovação, para que o “Fazer a Ponte” não se “desfizesse”.
Seria necessário que a Ponte fosse além da rutura com o instrucionismo. Sedimentado o paradigma da aprendizagem, urgia penetrar o da comunicação. Convidei os novos protagonistas do projeto para um diálogo reconstrutor. Em breve, vos falarei da reação ao meu convite.
Por: José Pacheco
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