Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXLV)

Lanheses, 29 de maio de 2041

Queridos netos,

Um textinho publicado, em finais dos anos noventa, rezava assim:

“Algo de muito estranho se passava. Na binária rotina aula-teste instalara-se uma espécie de “bug” que perturbava a pacatez habitual. Os pais dos alunos perguntavam se os exames da quarta classe tinham regressado. E já toda a gente procurava no baú das antiguidades os livros de fichas sem a etiqueta indiciadora de “manual de acordo com os novos programas”.

Mal a aula começava, os pobres alunos mergulhavam no “Livro de fichas de Português” e no “Caderno de fichas de Matemática”, num treino apenas interrompido para fazer xixi, ou comer o lanche.

Imaginemos que tudo não passou de um pesadelo ou de malévola efabulação. Decorridos escassos meses e para mal dos nossos inconfessados e irredimíveis pecadilhos, o cenário ficcionado, nos anos noventa, foi largamente ultrapassado pelas “novelas da vida real”. Partilharei convosco uma pequena parcela de um vasto acervo de episódios.

Não me atreverei a mencionar uma parte significativa do anedotário, tal a incredulidade que me inspiraram os episódios que me foram narrados e apesar de não duvidar da honestidade dos professores confidentes. Portanto, devereis multiplicar por cem (ou por mil?) o pasmo que vos suscitar a leitura, para uma aproximação mais fiel à realidade. Passemos aos factos, para que ninguém me acuse de cometer exagero.

Na antecâmara das torturas de uma escola de que não direi o nome, para que tivessem tempo de “treinar para a avaliação”, os alunos do quarto ano não puderam ir ao passeio escolar nem puderam participar em atividades desportivas. Na televisão, uma criança desabafava:

“O nosso professor só deu aulas de Português e Matemática, por causa dos exames. Estou saturado!”

Num jornal diário, um professor se confessava:

“Tenho vindo a preparar o terreno com os meus alunos. Já há algumas semanas deixei de dar matéria e estou a fazer revisões com os estudantes”.

Num assomo de lucidez, reconhecia que “os alunos estavam assustados”. Porém, não recuava nessa gesta gloriosa, nem confessava a intuída ineficiência de um teste. Daria uma “nota”, ordenando seres humanos numa escala, justificando a elaboração de absurdos rankings.

Em meados do mês de maio, “com os exames à porta”, nem por intercessão de anjos e arcanjos se debelavam reminiscências das dores de barriga, das lágrimas e prostrações características dos primeiros dias de escola. A Sílvia dizia que “desde terça-feira passada estava a estudar, que brincava menos e já não via televisão, nem ouvia música”. Já mais para o fim do recolhimento, a mãe fazia um balanço provisório:

“Hoje, ela já não estava tão nervosa. Mas na quarta-feira até vomitou.”

Em vésperas de ficar concluída essa espécie de preparação para as olimpíadas de uma avaliação feita feroz competição, o Fernando perdeu o apetite. No dia da prova, tentou tomar um chá. Vomitou-o. A Carolina não conseguiu dormir, só pensava nos graus dos adjetivos. E entupiu-se lhe a memória, já “não sabia nada!” A mãe obrigou-a a estudar a gramática toda. “Bloqueou” e as lágrimas caíram-lhe dos olhos cansados de inútil estudo.

A prova de Matemática surpreendeu muita boa gente. Meditemos sobre as indignadas reações de alguns professores:

“Eles dizem que correu bem, mas eu já vi muita asneira. O problema foi a falta de raciocínio. A primeira parte tinha muitas armadilhas, sólidos, décimas. A prova estava deslocada, apelava ao raciocínio lógico. E os nossos manuais didáticos não preveem isso. Isto não pode ser! Os livros não traziam nada disto. Valha-me Deus!”

Por: José Pacheco

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