Quiaios, 30 de maio de 2041
“Euntes in mundum universum, predicate omini creature”, como diria o Padre António Vieira. Se um problema emergia do comum dos dias, aquele professor não enjeitava responsabilidades. Se uma criança denotava embaraço, jamais alegava “não ter recebido formação para casos especiais”, não atirava culpas para cima do sistema, nem as atribuía a fatores genéticos, ou ao baixo nível económico e sociocultural da família do aluno.
Aprendia, errando. E, a cada “dificuldade de ensinagem” fazia corresponder uma oportunidade de aperfeiçoamento da sua prática profissional. Ao encontrar “soluções” de desenvolvimento profissional, achava maneiras de se melhorar como pessoa.
Porfiava num autodidatismo fundador de uma outra cultura profissional, num peculiar percurso de formação experiencial. De modo que, quando foi convidado para colaborar com uma instituição de formação inicial de professores, acolheu o convite com alguma desconfiança. Via a universidade como um lugar mal frequentado, a crer naquilo que um jovem amigo, recém entrado na dita, lhe confidenciara:
“Pensei que na universidade o ensino, por assentar mais na nossa responsabilidade, fosse melhor. Pelo contrário: a faculdade é muito grande, ninguém se conhece e o ensino é normalmente mais desumano”.
Movido pela curiosidade, motivado pelo desejo de influenciar jovens espíritos, ou fosse lá porque fosse, aceitou o desafio. Na escola (dita) “superior”, encontrou o que já esperava, mas também conheceu professores dissonantes, verdadeiros mestres.
Na sua primeira “aula”, foi empurrado para uma posição magistral, colocado perante um auditório repleto de jovens alinhados em filinhas, de costas voltadas uns para os outros. Nessa primeira “aula”, compreendeu as razões pelas quais os professores, que o cego sistema de colocações fazia aportar à sua escolinha, diziam que “para saberem trabalhar naquela escola, precisavam tirar um curso”.
Se, antes, ele não percebia de que “curso” se tratava, não tardou a perceber. Feitas as apresentações e porque não nutria particular afeição por “aulas-comícios”, lançou a interrogação sacramental:
“O que iremos fazer com o tempo de que dispomos?”
Entre a estupefacção e alguns sorrisos, aqueles candidatos a professores, que já se preparavam para copiar discurso, ergueram o olhar para a estranha criatura.
“Ó professor, está a falar a sério?”
“Claro!” – respondeu o professor – “O que quereis aprender?”
Os estudantes entreolharam-se. Depois de um longo silêncio titubearam:
“Ó professor, nunca ninguém nos perguntou isso!”
A explicação, a trágica explicação estava dada. Ao longo de nove anos de aprendizagem básica, três anos de aprendizagens secundárias e outros três de sabe-se lá o quê, nunca um docente lhes perguntara:
“O que quereis aprender?”.
Nas “aulas” seguintes, se o novo professor propunha aos futuros professores uma reflexão sobre a prática, à luz de uma qualquer teoria, respondiam invariavelmente:
“Lembro-me de ter dado essa matéria, mas já não sei nada disso. Foi só decorar, para vomitar no exame e, depois, esquecer. Se pedimos aos outros professores que nos falem da lei x, do método y, de coisas que sentimos que vão fazer-nos falta, quando tivermos à nossa frente crianças para ensinar, respondem-nos que o assunto não é do âmbito daquela disciplina”.
Caído o verniz de teorias mal digeridas, alheios à complexidade das tarefas que iriam defrontar, preocupados apenas em sobreviver, os novos professores tenderiam a reproduzir a escola cuja divisa era “faz como vires fazer”.
Por: José Pacheco
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