Seixal, 15 de junho de 2041
Em 2021, arrisquei fazer um último périplo por Portugal, ao encontro de educadores não-desistentes. O Manuel, a Paula e o João amorosamente cuidaram da logística. A Carina, o André, o David e tantos outros amigos me acolheram nas suas casas. Grata surpresa me esperava. Pela primeira vez, deparava com gestores predispostos à mudança: o Pedro, a Clara, o Nuno e alguns mais. Também havia um João… no ministério.
Nos encontros desse périplo, arrisquei abordar assuntos como o dos concursos e colocações de professores. Algumas conversas o suscitaram.
“Eu acho que as escolas deveriam ser como dizes, mas, com as condições que eu tenho, eu não posso…”
Interrompi o discurso do meu amigo professor:
“A que condições te referes?”
Balbuciou qualquer coisa acerca do número de alunos por turma, falta de espaço, falta de tempo e de material. Depois de uma fraterna desconstrução de ideias feitas, o professor admitiu que o que faltava era outra coisa. Mas, fugiu para a frente:
“Mesmo que os teóricos falem de ensino diversificado, com trinta ou mais alunos em cada turma, nunca poderemos fazer esse ensino. E não se pode pedir a um aluno de sétimo ano o que se pode exigir a um que está no oitavo. Não se pode voltar atrás, porque temos de cumprir o currículo”
Interrompi-o, mais uma vez:
“Explica de modo que eu entenda!”
“Por exemplo, na minha escola havia alunos que estavam no terceiro ano e ainda não sabiam ler nem escrever. Pusemos tudo de lado e aproveitámos bem o tempo. Trabalhámos só a Língua Portuguesa”.
Mais uma interrupção:
“E a Educação Física? E a Musical? Não fazem parte do currículo?”
Não respondeu. Nem precisaria, porque os professores não detêm o monopólio das “ideias feitas”. Frequentemente, os absurdos são instituídos por determinação ministerial. Esse meu amigo jurou ter lido em legislação recente e num artigo de jornal. “Planos de recuperação” poderão ser aplicados em alunos, para que “recuperem do atraso”; “aulas de recuperação para alunos mais fracos”, ou que não tenham tido um “desempenho aceitável”. Não definiu conceitos como o de “aluno mais fraco” ou de “desempenho aceitável”, ou se foi pedida às escolas a explicação dos “atrasos”. Dele escutei sugestões naif:
“Prolongar o ano letivo em mais alguns dias. Reunir os mais fracos para trabalharem matéria que não compreenderam tão bem”.
Não pude deixar de rir perante o modo solene como o meu amigo descreveu estas e outras óbvias sugestões de “flexibilização curricular” e me falou em “passar de ano para semestre”, prevenir situações de “retenção repetida”. Legitimava-se processos de exclusão escolar e social, quando se sugeria que se constituíssem turmas com “currículos próprios” constituídas por “alunos sem sucesso escolar” ou com “problemas de adaptação” (sic).
Nos idos de sessenta, eu havia passado pela primeira tentativa ministerial de “flexibilizar o currículo”. Com todo o respeito e solidariedade, lhe perguntei:
“Em que século estamos, meu amigo?”
Inspiradas na lógica fabril, com os seus cronogramas de produção e relacionamentos de trabalho hierárquicos, muitas escolas agiam como freios ao desenvolvimento, mantinham-se cativas de abstrações como: “turma”, “carga horária”, “aula”, ano letivo”.
O ministério era costumeiro em emitir disparates. Em 2021, exagerou. E eu não conseguia entender como, ministerialmente instalado, um João das ciências da educação permitia que as escolas não reconfigurassem as suas práticas, que adoptassem “planos de recuperação” e outros “remendos pedagógicos” ministerialmente decretados.
Por: José Pacheco
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