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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLVI)

Foz do Arelho, 10 de junho de 2041

Falar-vos-ei, mais uma vez sobre o projeto das “escolas de área aberta”. Pelas suas características – existência do grande espaço polivalente – a escola P3 facilitava a integração no meio social, tornando possível a sua utilização pela comunidade. Era área aberta de cooperação, de comunicação, uma das finalidades da “escola P3” era concretizada. 

Outros objetivos eram anunciados. Se havia intenção de criar um ambiente encorajador de melhor comunicação entre alunos e professores, mobilizava-se professores para o trabalho em equipa. Facilitava-se a adaptação da organização escolar às diferenças individuais e à contínua aquisição de conhecimentos, permitindo reagrupamentos funcionais de alunos. Estimulava-se a multiplicação dos contatos pessoais e, por conseguinte, uma melhor sociabilização. 

Diversas organizações, transformações temporárias e, por vezes permanentes, eram possíveis. Propunha-se outro tipo de relação entre os grupos, que constituíam a equipa educativa (pais, professores, alunos, auxiliares), uma outra prática. O trabalho e vida em grupo, a exigência de escutar o outro, tornava-se tão importante quanto a mudança de relações entre professores e alunos. Da instrução se passava para objetivos amplos de educação.

A escola de área aberta da Ponte era um convite ao trabalho em equipe e à participação cidadã. Nela se gestou um projeto de autonomia, que culminou na celebração de um contrato com o Estado português, decorria o ano de 2004. Não constituiu tarefa fácil. Em setembro de 2003, segundo o jornal “O Público”, cerca de trinta personalidades públicas, na sua maioria ligadas à educação, divulgaram um documento em que se solidarizaram com a comunidade educativa da Escola da Ponte, nomeadamente, com os professores que “teimavam em ser autónomos, criativos e donos da sua profissão”. E acusavam o Ministério de “fazer o contrário do que dizia”.

Nesse mesmo mês, por decisão dos pais, se anunciava que a escola iria reabrir, mesmo sem autorização do ministério, cabendo aos alunos mais velhos (impedidos de se matricularem na escola) “orientar e apoiar” os mais jovens.

No Porto, numa sessão pública de apoio à Escola da Ponte, que decorreu no auditório “completamente cheio” da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, os presentes juntaram a sua assinatura “aos mais de 2500 nomes que, numa semana, subscreveram um abaixo-assinado de contestação à atitude do governo de não autorizar que o projeto Fazer a Ponte se expandisse para o “terceiro ciclo”. Integrada no movimento Fazer a Ponte, foi promovida pela Escola Superior de Educação do Porto uma sessão “de informação, debate, solidariedade com a Escola da Ponte e defesa da escola pública”. 

No dia 10 de junho, feriado nacional em Portugal, escutei discursos apelativos de “uma nova cidadania”. No abril de 74, os portugueses tinham adormecido embalados por uma ditadura. No dia 25, acordaram democratas. Decorridas três décadas sobre o fim da ditadura, ainda se tornava necessário defender a democracia das insídias de políticos intelectual e moralmente corruptos. 

Por ter sido berço de uma “nova cidadania”, a Ponte havia sido alvo de tais políticos. Disso vos falei nas cartas para a Alice: 

“Negrelas invadiram o espaço da escola, parasitaram saberes e imitaram o canto de outros pássaros, para lhes roubar o futuro. As gaivotas acreditaram nas negrelas, deixaram-se enganar pelo seu encantatório canto. Espantaram-se, quando as negrelas recusaram elevar a alma à altura do sonho”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLV)

Pampilhosa da Serra, 9 de junho de 2041 

Queridos netos, quando o corpo já dava sinais de cansaço, quando já quase decidia suster a contínua viagem, eis que novos focos de mudança despontavam. 

No junho de há vinte anos, fui a Portugal, naquele que foi o último périplo de prospecção de “não-lugares” (recordais-vos da definição de “utopia”?), onde uma nova educação surgia. Quando já pensava que, em Portugal, o torpor instrucionista se apossara definitivamente dos educadores, o entusiasmo de diretores de agrupamento de escolas, de vereadores da educação, de pais e professores me surpreendeu. Era algo inédito. Restabeleci o diálogo, reuni energias dispersas, num derradeiro fôlego. E me deixei atrair pelo ímpeto de novos e inusitados projetos. 

Em cinco “não-lugares” concentrei esforços. A norte, uma Ponte revisitada era referência. E a “escola de segunda oportunidade” da Daniela foi locus de prodígios. No sul, se estabelecia uma rede de escolas. E eu punha fé nos ideais de um filho professor. Na região centro, no interior mais interior do Portugal profundo, entre serras e rios, assumi um compromisso com uma comunidade. E até pensei em ficar.

No périplo do mês de junho de há vinte anos, acompanhei a Alexandra, a Raquel e a Cristina no esboçar de um projeto. Foi aquele em que mais investi, dado ter sido o mais confinante com os meus princípios. Dele vos falarei em próximas cartinhas. Por agora, vos deixo com palavras de um filho dessa terra. 

Em 1912, José Caetano escrevia:

“Na minha última digressão à minha terra, observei algumas coisas que bastante agradaram ao meu coração. O que mais me encheu de júbilo foi o interesse que notei pela instrução. É preciso instruir e educar, para que o homem saiba o que quer ser, saiba ser livre e saiba ser cidadão”.

Sábias e percursoras palavras, mais adiante tornadas realidade. No mês de junho de há vinte anos, a aldeia dos Padrões acolheu o encontro “O Interior da Educação no Centro da Natureza”. Um jornalista assim o descrevia:

“Num registo informal, sereno e em comunhão com a natureza, a sessão denominada “Chão de escola com pólis” reuniu autarcas da região, que intervêm na área educação, professores e representantes do Agrupamento de Escolas e da Associação de Pais, que conferenciaram com o professor José Pacheco e com o secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa. Os desafios que a interioridade coloca à educação foram o tema dominante. Para Jorge Custódio, vice-presidente da Câmara de Pampilhosa da Serra, é urgente “pensar o que é que deverá ser o ensino nestes territórios” e se “este sistema de ensino se adequa a esta realidade de interior”.

Esperançoso, mas prevenido, cuidei de colocar os novos projetos ao abrigo de perigos que, em 2001, descrevera numas cartinhas: 

“As gaivotas inventaram outros modos de viver e de voar. Contrariavam os porquenãos, pássaros com tendência para beber silêncios no degredo dos ninhos. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos. Numa das manhãs que sucederam à medonha invasão das negrelas, calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra, que não era igual a outras pedras, uma pedra detentora de inefáveis dons, de uma clara magia. Sempre que uma gaivota nela pousava e cerrava os olhos, subia da pedra da idade da pedra um suave perfume. E eflúvias meditações se produziam. 

Do recanto mais íntimo de um lugar onde os homens supunham não haver lugar para a imaginação…” 

E por aí seguia uma corrente de metáforas, fraternos avisos, em tempos de desfeita euforia. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLIV)

Santa Luzia, 8 de junho de 2041

Por vezes, chego a pensar que possais não acreditar no que vos digo, tal o absurdo das situações, que eu descrevo.  Hoje, vos falarei de um tempo em que as escolas se ornamentavam de inúteis dispositivos. Como aquele que descrevo nesta cartinha, memória de um tempo em que a pedagogia andava arredia das escolas, de quando ainda estavam submetidas a um rígido controle e carentes de autonomia. 

O “Conselho de classe” já fora objeto de inúmeros artigos, dissertações e teses. Com outra designação, já o testáramos na Ponte, ao longo de mais de duas décadas, e o tínhamos dispensado. Ressalvadas as exceções, as reuniões desse órgão eram rituais absurdos, decorrentes de um absurdo maior – não era apenas esse conselho que deveria ser substituído por algo que fizesse sentido, era a escola que deveria interpelar e reelaborar a sua cultura. 

Era vasto o conjunto das suas atribuições: “deliberar sobre objetivos, metodologias, formas e critérios de avaliação, a inter-relação com a família, adaptações curriculares para alunos com necessidades especiais”. Poderia constituir-se num espaço de gestão democrática, mas nele predominavam atitudes autoritárias e discriminatórias. Era nítida a diferenças entre o espírito dos normativos que regiam o seu funcionamento e a sua prática. Órgão pesado e burocratizado, juntava professores de diversas disciplinas com coordenadores pedagógicos, supervisores, orientadores educacionais e até alunos. 

Na prática e contrariamente ao que a lei estabelece, a preocupação do conselho não era a de dinamizar a gestão pedagógica, mas de classificar alunos. E classificar de modo ingênuo e inútil. Confundia-se avaliar com aplicar prova; confundia-se avaliação com classificação. A organização interdisciplinar e a centralidade da avaliação como foco de trabalho andavam ausentes das reuniões. Prevalecia o ritual que restringia o ato de avaliar ao veredicto de aprovado ou reprovado, ao “fechar as notas”, elencar queixas e encaminhá-las para especialistas. 

Cito registros de observação de uma reunião de Conselho de Classe, onde se faz uso e abuso de apreciações subjetivas:

Ele é muito desorganizado, é muito disperso, não faz nenhuma tarefa.

Não seria um PPDA?

Ele é atirado. O próprio jeito de ele caminhar. Caminha assim, ó! Com os pés arrastando.
Então, a gente pode fazer um PPDA e colocar no PPDA isso.

Deve ser PSAE…

Havia siglas para tudo, menos para avaliar. O pendor burocrático desse inútil e pernicioso órgão é evidente nos normativos: 

O conselho de classe reunir-se-á, ordinariamente, conforme calendário anual divulgado pelo nível central da Secretaria Municipal de Educação; o Conselho de Classe Extraordinário reunir-se-á conforme previsto na Deliberação E/CME n°16/2008, desconsiderando a Resolução SME mencionada no preâmbulo da referida legislação

Eis algumas das tarefas impostas a um conselho de classe: 

Índices de Aprovação dos dois últimos anos. Os dados devem ser apresentados através de números e porcentagens. Última pontuação obtida no IDEB. Meta proposta pelo IDEB para 2009 (…).

Netos queridos, crede que as escolas dos idos de vinte chegaram ao ponto de serem geridas de modo semelhante à gestão de uma repartição de registo civil, ou de uma padaria. Nas decisões, predominavam critérios de natureza técnico-instrumental e burocrática. A Escola definhava, dependente de um modelo de direção, gestão e administração caduco. A enfermidade da escola ainda se prolongou por longos anos, deixando atrás de si um rasto de ignorância e corrupção.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLIII)

Sezim, 7 de junho de 2041

No mês de setembro de 2003, no anfiteatro de uma faculdade da Universidade do Porto, uma sessão pública servia para lembrar aos políticos que o projeto Fazer a Ponte fora criado, exclusivamente, “com razões do foro educativo” (sic). Entretanto, em carta dirigida ao Ministro da Educação e ao Presidente da Câmara Municipal de Santo Tirso, a comunidade da Ponte avisava:

“Há um tempo para apelar e outro para exigir. E nós já estamos quase a ultrapassar o limiar do desespero. Chegou, portanto, a hora de exigir. Não exigimos do país e das autoridades o que a outras escolas tem sido negado. Exigimos, apenas, que sejam honrados os compromissos livremente assumidos pela administração e a reposição de uma situação que permita a esta Escola continuar a educar os seus alunos com a qualidade que as suas famílias, muito legitimamente, reclamam”.

O que estaria na origem dessa reivindicação? Nada mais do que mais uma atitude prepotente de políticos oportunistas, em vésperas de eleições. 

O relatório de avaliação externa encomendado pelo ministério recomendara que o projeto se expandisse e que novas instalações fossem construídas, para albergar o projeto, em Vila das Aves. As “autoridades” ignoraram as conclusões do relatório, descumpriram compromissos. Em carta dirigida ao Ministro, os pais da Escola da Ponte reagiram: 

Há mais de três meses que aguardamos uma resposta à exposição que lhe dirigimos. Os nossos filhos, Senhor Ministro, não são carne para canhão. Como escreveu um grande pedagogo brasileiro, amigo e admirador da nossa Escola, quem tolera tudo é porque não se importa com nada”. 

Os pais terminavam a mensagem, dizendo “Que a razão o ilumine!”

A razão do ministro não se “iluminou”. E os professores da Ponte decidiram não aceitar desenvolver o projeto nas condições impostas pelo ministério. Corajosamente, informaram o Senhor Ministro e a Câmara Municipal de que, se até ao final do mês de julho, não dessem sinais inequívocos de que respeitavam as conclusões e as recomendações da avaliação externa, garantindo a continuidade do projeto, não aceitariam quaisquer destacamentos, regressando aos seus lugares de origem. Era Amor e Coragem, em tempos de inevitável confronto, de afirmação de autonomia. 

Numa conferência de imprensa, em que participaram os representantes da comunidade, a Associação de Pais acusava o Ministério de não «honrar os compromissos livremente assumidos» e classificava a decisão de “discricionária e «discriminatória”. Em comunicado, a Associação de Pais denunciava:

“Em vez de premiar a qualidade, o Ministério da Educação asfixia-a. Não acreditamos que o senhor Ministro da Educação queira ficar na história como aquele que extinguiu este projeto. A arrogância e a falta de sensibilidade que continuam a ser evidenciadas pelo Senhor Ministro da Educação” e os seus mais próximos colaboradores leva a pensar que o que o Ministério pretende é mesmo acabar com este projeto. A partir do dia 15, ocuparemos pacificamente as instalações da Escola e não sairemos daqui até que o governo resolva os problemas que criou”.

Era evidente que Ministério e Câmara Municipal se mancomunavam, para destruir o projeto. E, se o não conseguiram, lograram “ilhá-lo”.

No dia da abertura oficial do ano letivo, conforme tinham anunciado, os pais ocuparam a escola «por tempo indeterminado».  O ministério reagiu. Cedeu.

À distância de quarenta anos, sinto saudades de extraordinários pais e professores, de um tempo de legítima indignação. Me orgulho de ter feito parte de uma comunidade que não se resignava.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLII)

Vila das Aves, 6 de junho de 2041

Estávamos em plena década de sessenta. Os encarregados da construção de edifícios escolares estudaram alternativa ao projeto do “Plano dos Centenários”, de que vos falei em cartinha anterior. Em Portugal, vigorava ainda a “separação de sexos no ensino primário”. Na construção da primeira escola de área aberta, foi necessário construir quatro salas (duas de cada género) com recreios cobertos, também separados. O pátio e a sala polivalente eram comuns.

Nessa escola se pretendia realizar uma “experiência pedagógica”, cujo teor se desconhece. A burocracia do ministério a inviabilizou, com argumentos de natureza técnico-administrativa. E teriam também inviabilizado o novo projeto de edifício escolar, se algumas autarquias, a quem a lei permitia a construção de escolas para o ensino primário, não tivessem sido sensíveis à mudança.

Em 1971, grupos de professores influenciados por correntes cooperativistas introduziram duas inovações no projeto: o trabalho em equipa de dois ou três professores; a consideração de núcleos de espaços para grupos de alunos, fugindo ao tradicional sistema de turmas-classes. Apesar de refletirem a tendência para a criação de “classes de nível”, anteciparam a constituição dos núcleos de projeto da Ponte.

Havia quem confundisse os núcleos de projeto com a divisão do ensino básico em três ciclos, mas o vosso avô participara na “experiência das fases de escolaridade”, sabia que os “ciclos” inventados pelo ministério, anos mais tarde, mais não eram que nova segmentação cartesiana.

O ministro Veiga Simão estava mais voltado para outros assuntos, e os técnicos das construções escolares aproveitaram a oportunidade para contatos exteriores ao ministério, sendo influenciados pelos movimentos de renovação pedagógica que, nesse tempo e ainda em plena ditadura, tomavam forma.

O projeto P3 ficou concluído entre 1970 e 1972. Apesar de ter sido enviado ao ministério, nas suas diferentes fases, nunca obteve do ministério qualquer resposta, favorável ou desfavorável. Idêntica atitude de total mutismo se viria a verificar na fase de generalização de construção de “edifícios de área aberta – tipo P3”.

O primeiro prédio foi construído em Mem Martins. Depois, na Quarteira, Algarve. Seguiu-se concurso para edificação de outras vinte “escolas”. A construção, através das iniciativas das autarquias locais, generalizava-se. O ministério não se apercebera ainda de que tais escolas mereceriam uma atenção diferente, os seus professores uma formação específica, as comunidades alguns esclarecimentos.

Quando arquitetos e técnicos de educação conceberam as nossas “escolas de área aberta – a que chamaram “Projeto Normalizado P3” – sabiam que a Escola Primária era o lugar onde a criança passava grande parte do seu tempo. E que os primeiros anos de aprendizagem eram fundamentais para a sua vida futura. O que se aprendia e, principalmente, o modo como se aprendia, poderia despertar ou bloquear a evolução da personalidade. Libertar a criança da rigidez dos espaços e do mobiliário tradicionais pareceu a esses arquitetos um passo importante para a livre expressão e desenvolvimento da espontaneidade e criatividade naturais da criança. Também, um passo decisivo para a sua socialização.

A ensinagem do professor da classe tradicional era substituída por uma aprendizagem, que utilizava meios que facilitavam a apropriação de conhecimento. E a aprendizagem em pequenos grupos suscitava criação coletiva, desenvolvia cultura, o trabalho em comum, a vida em comum.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLI)

São Tomé de Negrelos, 5 de junho de 2041

Um jornal de dezembro de 1987 dava notícia de que “os professores de uma escola acabadinha de estrear descobriram um dia que ela tinha estantes sobre o comprido, a que não atribuíram valor imediato, Mais tarde, descobriram para que servia: para que eles e os alunos arrumassem os esquis”.

Em 1966,  o grupo de trabalho constituído por técnicos do Ministério das Obras Públicas e do Ministério da Educação propôs-se elaborar vários estudos, entre os quais, um projecto para a construção de uma escola primária piloto, que viria a ser erigida em Mem Martins.

O ministério pediu explicação aos países do norte da Europa, que haviam patrocinado a edificação dessa escola: para que serviriam as “estantes com furinhos”, instalados no hall de entrada da escola?

Feita à semelhança das congêneres escandinavas, as estantes destinavam-se à colocação dos bastões de… esquis. Sugeriam que, em Portugal, os alunos fossem para a escola deslizando na neve os seu esquis. Ridículo!

Uma forte componente financeira esteve na origem do “Projecto Mediterrâneo”. O financeiro e o político viriam a descaraterizar o projeto das escolas de área aberta.

Foram instalados tapumes e paredes, quando os professores se queixavam de ouvir a aula e os gritos dos colegas da sala do lado. A arquitetura apelava ao trabalho em equipe, mas prevalecia a cultura individualista do professor em sala de aula.

O projecto das escolas de área aberta obedecia a alguns princípios. O edifício da escola representava a transição da habitação para a vida pública, tinha em consideração o tamanho da criança e estava aberta ao exterior. O ensino se transformava em aprendizagem por via de atividades em espaços diversificados. Era fomentada a manipulação e criação de objectos, na zona de trabalho, dita “suja”, dotada de pontos de água. Eram organizadas situações como a de trabalho em grupo, prevendo-se a mobilidade do equipamento.

As refeições eram consideradas atividades educativas, tendo sido suprimida a separação  entre edifício-cantina e edifício-escola. As instalações sanitárias seguiam a mesma lógica, como apoio e momento de educação. A escola funcionava num edifício aberto, num equipamento social de e para toda a comunidade.

Dado que nem todas as atividades podiam ser realizadas no mesmo espaço, eram instalados os chamados “polivalentes”. Ali se realizaram as primeiras reuniões da Assembleia de Escola. Mais tarde, o “polivalente” se mostrou pequeno para albergar os encontros da comunidade, das pessoas, da escola. E as reuniões passaram a realizar-se no edifício do cinema da vila.

Da Europa dita Comunitária chegavam milhões de euros, desperdiçados na construção de prédios de escola, autênticos “elefantes brancos”, mas a que a ignorância atribuía a classificação de “escolas do futuro”. A ambição de políticos e a crença de que escolas eram edifícios deitaram a perder projetos que, se concretizados, mudariam a face da educação.

A escola de área aberta da Ponte – talvez a única não descaraterizada –  foi “despejada”. Políticos manhosos intimidaram professores medrosos, que desrespeitaram a vontade da comunidade e as suas soberanas decisões. O silêncio tomou conta do edifício. Vila das Aves e o bairro da Ponte perderam uma escola.

Em São Tomé se acantonaram as pessoas, se refugiou um projeto, que perdera a causa e o rumo. A Ponte ainda era uma boa escola, mas cadê a inclusão social? Paredes-meias com a uma “escola normal”, com ela não comunicava. Constituíra-se numa ilha de excelência acadêmica socialmente desenraizada.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DL)

Santo Antão, 4 de junho de 2041

O meu amigo Vítor dizia que a utopia se achava entre a realidade e a reflexão. Se, na definição de Morus, utopia era um “não-lugar”, ipso facto cumprir a utopia educacional pressupunha conhecer o lugar onde se concretizava e, incessantemente a refletir. Essa era uma das características de projetos inovadores – ou ocorriam dialeticamente, em permanente fase Insituinte, ou deixariam de ser inovadores.

Uma escola concretizou a utopia, num lugar concreto. No lugar da Ponte se gestou e renovou. Visitada, estudada, a nova construção social de aprendizagem rompeu fronteiras. No Projeto Âncora alcançou um formato “quase ideal”. Quando a maldade humana o extinguiu em Cotia, ele se se reinventou na origem e se reconfigurou em outros “não-lugares”. 

A função da utopia é saber caminhar. Mas, como diria Galeano, quando dávamos dois passos, ela dava dez. Caminhando, ajudei a criar escolas inspiradas na Ponte, atualizando a proposta de 1976, “descongelando” o escolanovismo original, ficando atento a reinterpretações e ao desvirtuamento operado por acadêmicos teoricistas. 

Naquele tempo, o verbalismo pedagógico servia-se de teorias fósseis, para prolongar a agonia do instrucionismo. Recuperava, por exemplo, argumentos de Gagné, que considerava o aluno como inapto para agir por si próprio: 

“Manter o aluno interessado no que está fazendo e nas habilidades que vai adquirindo é tarefa que requer grande capacidade de persuasäo de uma pessoa, geralmente do professor, que representa o mundo da experiência e da sabedoria do adulto”

Para esse teórico näo restava qualquer dúvida de que ao aluno competia adquirir habilidades e ao professor a ciclópica tarefa de o manter interessado, a capacidade de o “motivar”, de o seduzir. Fazia apelo à “instruçáo programada”, como se tudo fosse programável em função do binómio estímulo-resposta, chegando ao ponto de afirmar que:

“O resultado é também, no sentido verdadeiro, exterior  à pessoa que aprende (…) ensinar implica agir sobre o aluno com o propósito de: dirigir-lhe a atençäo e as acçöes e guiar o seu pensamento para determinadas áreas”. 

No âmbito das teorias associacionistas, Skinner criou uma versäo muito particular de “individualizaçäo”, que Gagné reproduziu, uma individualizaçäo que fazia apelo a uma atvidade mecânica e proscrevia a liberdade. Skinner afirmava ser necessário manipular as condutas dos outros para o bem geral. Ia ainda mais longe na defesa da utilizaçäo do “reforço positivo”, ao dizer que os indivíduos controlados se sentiam livres. 

Gagné estava certo, ao afirmar que o sistema educacional se destinava a “provocar modificaçöes nas capacidades e atitudes”. A educaçäo é ato intencional. Resta saber a que “modificaçöes” se referia, pois a escolha das condiçöes para a aprendizagem determinava o tipo de modificaçöes que se operavam. 

No capítulo da determinaçäo das situaçöes de aprendizagem, Gagné era peremptório: 

“A questäo mais importante é a extensäo do que pode ser previamente determinado para o indivíduo que aprende. Näo se pode esperar que a pessoa que aprende seja capaz de julgar a eficácia das directrizes de ensino traçadas pelo professor”

E concluía: 

“Pode-se duvidar de que uma sala de aula comum seja o lugar em que se possa realizar a tarefa de determinar condiçöes de aprendizagem para cada estudante em particular. Para o professor, é simplesmnte impraticável atender a cada aluno individualmente”

Por aqui se vê como era difícil a tarefa de romper com o praticismo e o verbalismo. Como era difícil a tarefa de inovar!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXLX)

Matosinhos, 3 de junho de 2041

Recordo-me de ler num opúsculo acadêmico que educar era contribuir para as aprendizagens dos alunos, através da “proposta de desafios culturais”. Curioso inveterado, deixei-me seduzir pela expressão. Li e reli o folheto. Logo me surpreendi com a primeiro dos parágrafos. Eis o que dizia:

O “paradigma pedagógico da comunicação” é um paradigma que se distancia tanto do paradigma da aprendizagem como do paradigma da instrução”.

O que eu havia lido do Papert, do Castells e de outros não sugeria apenas pedagogia (o conduzir a criança), mas, sobretudo, antropogogia (o aprender ao longo da vida). Por “experiência” própria, sabia que o paradigma da comunicação não se distanciava do paradigma da aprendizagem. Contribuições do paradigma da aprendizagem, como do paradigma da instrução, eram bem-vindas na prática de uma nova construção social de aprendizagem. Prova disso era o “pot-pourri”, das escolas montessorianas, freinetianas, waldorfianas.

A nova construção social de aprendizagem que, por essa altura, preparávamos colhia contribuições dos três paradigmas. Assegurávamos a apropriação do património cultural, reduzindo a prática do aulismo. O aprendiz deixava de ser o aluno-objeto de ensinagem, para ser o sujeito de aprendizagem em autoformação. E o âmago do processo de aprendizagem deslocava-se do professor e do aluno para a relação. Aprendia-se na intersubjetividade.

Mais adiante, se dizia que contribuições do paradigma da comunicação favoreciam a interação em… sala de aula. Este e outros devaneios teoricistas eram prova de que quem sabe faz, quem não sabe ensina. E, naquele tempo, quem não sabia ensinar passava por ser formador de professores.

Como bem diziam alguns companheiros das ciências da educação, as aprendizagens dependiam da qualidade da comunicação, que os sujeitos de aprendizagem estabeleciam entre si e com os seus tutores. Através da elaboração de roteiros de estudo e no decurso da pesquisa, eram estabelecidos vínculos multidimensionais e produzidos conhecimentos objetos de partilha.

Nem sempre foi assim. Durante a segunda década deste século, a Internet foi invadida por verborreia teoricista. Estava na moda dissertar sobre “metodologias ativas”, sobre “ensino híbrido” e, como não poderia deixar de ser, sobre “comunicação”. Infelizmente, o discurso não passava de mais uma tentativa de cosmética pedagógica. Dessa vez, com a colaboração de cientistas da educação, que divulgavam a novidade, enquanto praticavam “híbridos instrucionistas”.

Em 2021, o Projeto Âncora atualizou a proposta da Ponte de 1976. Às práticas do paradigma da aprendizagem juntou rudimentos do que chamavam “paradigma da comunicação”. A avaliação era, também, ato de comunicar, de partilhar saber numa ação, aquilo que o Perrenoud chamou “competência”. Recordo um episódio ocorrido durante as filmagens de um filme, que teve por título “Quando sinto que já sei”.

O realizador perguntou a uma jovem:

“Então, nesta escola não há avaliação?”

“Avaliação, há”. – respondeu a jovem – “Só não há prova, porque prova não prova”.

“Explica lá isso!” – insistiu o realizador.

“É assim… Nós fazemos projetos e aprendemos coisas. E, quando eu sinto que já sei, partilho o que já sei com os meus colegas”.

A avaliação estava alinhada com a aprendizagem. As evidências de aprendizagem eram “comunicadas”, partilhadas. Eram úteis à comunidade, mesmo quando resultavam de roteiros do currículo da subjetividade. Ali acontecia uma avaliação efetivamente formativa, contínua e sistemática.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXLIX)

Pampilhosa da Serra, 2 de junho de 2041

Netos queridos,

A Escola da Ponte me condenou a uma diáspora, que só em meados da década de vinte cessou. Andei de escola em escola, no meu carrinho em segunda mão, por estradas onde Cristo não passou. Nunca aprendi a dizer “não” e, sempre que um professor me chamava, eu ia ao seu encontro. 

Recordo, em particular, uma viagem a Pampilhosa da Serra, nos finais da década de setenta. Estrada de terra, escola do Plano dos Centenários, um professor já entrado na idade, um dos muitos extraordinários projetos, que, infelizmente, se quedaram pelo anonimato.

Como vos disse na cartinha anterior, andei por terras de França, para colher “in loco” ensinamento junto daqueles que concretizaram práticas da Escola Nova. Outras viagens se seguiram. Em meados da década de oitenta (se não me falha a memória), representei a Ponte e Portugal no encontro de escolas inovadoras dos doze países da, então, “Comunidade Económica Europeia”. 

Na década de noventa, nova passagem por Paris, para religiosamente escutar Morin. Depois, para Londres, com o meu amigo Steve, para estabelecer contato com mestres das ciências da educação. Procurava, sobretudo, encontrar Basil Bernstein. Já não se encontrava na University College, mas pude garimpar rica documentação nas bibliotecas londrinas.  

Bernstein buscou compreender a relação causal entre classe social, linguagem e rendimento escolar, partindo de dados concretos, segundo os quais os estudantes da classe média obtinham, contrariamente aos da classe trabalhadora, êxito em sua vida acadêmica. Grosso modo, entre estes predominava aquilo que ele designou por “código restrito”, enquanto os primeiros recorriam ao que ele chamou de “código elaborado”.

Em síntese, “código restrito” era definido ”pela “rigidez da sintaxe e pelo uso restrito das possibilidades formais de organização verbal.” Era “uma forma de linguagem oral relativamente condensada, na qual determinados significados” eram restritos. E a possibilidade de elaboração era reduzida. 

Nas palavras de Basil Bernstein, no “código elaborado”, “as possibilidades formais e a sintaxe são muito menos previsíveis e as possibilidades formais de organização da sentença são usadas para esclarecer o significado e torná-lo explícito”. Este código se caracterizaria por sentenças gramaticalmente complexas, pelo uso variado de conjunções e orações subordinadas de preposições que indicariam relações lógicas, pelo grande recurso a adjetivos, advérbios e pronomes.

A comunicação entre professor e aluno estava sujeita a “ruído”. A discrepância entre a linguagem falada pelo estudante e a linguagem falada na escola estaria na origem de problemas de aprendizagem. O domínio desses códigos explicaria, em grande parte, o insucesso escolar de muitos estudantes. 

Algo semelhante sobreveio no discurso “elaborado” das ciências da educação. A teoria foi sequestrada, não fertilizou a prática. Virou quase esotérica, ficou exposta à má-lingua dos detratores, que criaram termos insanos, como o “pedagogês”, para designar o discurso “obscuro” de universitários ociosos. 

A praga propagou-se da academia para o ministério. Um linguarejar pretensamente científico foi prodigamente usada pelos eduburocratas do ministério e replicada em teses de doutorado. A caricata situação se prolongou século XXI adentro, acarretando o descrédito de movimentos potencialmente inovadores, legitimando desmandos da administração educacional, contribuindo para manter a escola ao nível da indigência pedagógica.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXLVIII)

Fonte Boa, 1 de junho de 2041

Ainda não tinham sido inventados os TDH, nem havia Ritalina. Mas, todas as semanas, nos chegavam crianças a quem a escola negara o direito à educação.

Disse-me uma amiga que alguém lhe disse, que outro alguém lhe dissera, que alguém terá dito que a escola que acolheu o Miro – a Escola da Ponte – não aceitava qualquer aluno e que os “selecionava”. 

Este e outros malfazejos disparates visavam denegrir a imagem dessa escola, pelo que se justificou divulgar o exemplo do Miro. Devereis estar recordados de o ter feito numa outra cartinha. Por mais inverosímil que possa parecer, o sofrimento do Miro era real. E não se pense que fosse um caso isolado. Poderia trazer-vos dezenas de casos semelhantes, que tinham por centro os tais alunos “selecionados”. 

Poderia contar-vos muitas histórias de crianças recuperadas nessa escola de última oportunidade. A história da Ana, após quatro anos de degredo num fundo de sala, rotulada de burra. A do Francisco, que, chegado à nova escola, desatou aos pontapés nos novos colegas, a cuspir, a insultar, por ser essa a gramática que, secretamente, aprendera em três anos de insultos e humilhações. O Eduardo, após meses de privação de recreio, só porque o seu braço doente o impedia de acompanhar a turma na escrita de carreirinhas de letras. O Joaquim, que se gabava de, na outra escola, “ter posto um professor no hospital”. O Pedro, o choro em forma de criança, nos primeiros dias na nova escola, porque, se já sabia ler quando entrou para a antiga, foi forçado a esquecê-lo e a “acompanhar o resto da classe”. Acumulara cansaços e desgostos. Face ao estado em que chegou, quase diríamos ser possível a uma criança poder odiar. 

Do órfão ao maltratado, os rejeitados nos chegavam encaminhados por psicólogos, instituições de reinserção social. Vinham de lugares distantes, com marcas de experiências de abandono e indiferença, que era a pior forma de violência. Estavam sozinhos na escola. 

Deixaram de estar sozinhos na escola dos alunos “selecionados”. Dentro dos seus humanos limites, a escola de que vos falo a todos acolhia, a todos ajudava na recuperação da autoestima, do respeito por si próprios. Direis que todas as escolas tinham este tipo de alunos. A diferença está em que a nova escola do Miro tinha mais. Tinha os que lhe cabia em sorte mais aqueles que outras rejeitavam. 

A ideia de que a pedagogia era a arte de ensinar tudo a todos como se fosse um só, permitia manter a crença nas virtudes do “ensino tradicional”, conservar expectativas e perenizar a representação que a sociedade tinha de escola. Eram ignorados os efeitos colaterais das práticas ditas “tradicionais” e a sua inadequação às transformações sociais a que assistíamos, desde tempos imemoriais. 

Há muito tempo, mesmo muito tempo, as ciências da educação confirmavam que o mundo dos métodos de ensino e o dos processos de aprendizagem ainda estavam separados. A forma como o professor ensinava ainda não fora relacionada com a forma como o estudante aprendia. E as “reformas” eram disfarces, apenas contribuíam para adiar a mudança e impedir a inovação. Adolfo Lima, pedagogo escolanovista, afirmava:

“Uma reforma radical é talvez possível, mas que uma reforma não radical é inútil”. 

Mais de um século decorrido sobre a sábia afirmação, era a cultura das escolas que continuava a estar em causa e urgia transformar. Era preciso saber o que poderíamos ainda fazer da “Escola Tradicional” com aquilo que fizeram dela. Velha e matreira, ela aprendeu a legitimar-se. Beneficiou de implantes, que lhe alteraram o rosto sem lhe modificar as entranhas.

 

Por: José Pacheco

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