Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXVII)

Palmela, 1 de julho de 2041

Esta cartinha resulta da reunião de notas de campo com algumas entrevistas que (por acaso?) eu e a minha amiga Sofia encontrámos perdidas e que ninguém ainda reclamou da propriedade.

Não sabemos se vieram parar em boas mãos, mas as depomos nas vossas e na primeira pessoa:

“Da minha mãe, já nem as feições eu recordo. Cedo lhe perdi o rasto. E, só agora percebi o que todos vinham tentando dizer-me: que eu nem sequer deveria ter nascido. Pensei que, na escola, ainda poderia vir a ser gente, que teria direitos, poderia ser criança. Enganei-me, porque foi como em casa, sem afeto, sem cuidados. Mas a escola também não tem culpa. O que poderia fazer a professora, se eu não tinha cabeça para aquilo? 

Pensando bem, a escola até foi a mãe que eu não tive. Não me acariciava, mas também não me batia. Não me olhava, mas também nada me pedia. Não me negava o teto, ainda que nem um banco me desse onde pudesse sentar-me, ou poisar as minhas coisas. Mas que coisas? Tinha-me esquecido de que a professora, talvez para me poupar à vergonha de pouco ou nada aprender, nunca me deu um livro, ou um caderno”.

Agora, na segunda pessoa:

“Falaram-nos de ti. Só queremos que nos leves à tua escola. 

P’ra quê? Já não ando lá. Só lá ia p’ra comer e dormir, ao fundo da sala. Só lá andava a incomodar. Quando a senhora dos deficientes lá ia, ainda valia a pena! 

A professora da primeira, um dia até falou comigo e disse-me que tinha muitos para ensinar as letras e que não podia perder tempo com atrasados como eu. Depois, mandou-me embora, para eu não pegar piolhos aos meus colegas.

Mas, levas-nos lá, ou não levas?

‘Tá bem. Eu levo! Mas tens aí dois reais, para eu comprar um bolo? ‘Inda não comi nada, hoje.” 

Finalmente, na terceira pessoa. 

Contornámos o recreio daquela escola, onde algumas crianças se empurravam e gritavam. Fomos ao encontro de um grupo de professoras, para saber como viram o Paulo os olhos daqueles que o conheceram. 

“Paulo? Paulo quê? Temos muitos”

Explicado de quem se tratava – um antigo aluno, “saído daquela escola, há dois ou três anos” – uma a uma, disseram: 

“Não, nunca ouvi falar!”

“Tendes a certeza de que esse Paulo não andou por aqui?” – insistimos. 

Tiveram a amabilidade de chamar a senhora diretora: 

“Espere lá! Estou recordada de um Paulo… Só um momento!”

Vimo-la vasculhar os armários e retirar de um deles um “livro de matrícula”. 

“Já não é bem do meu tempo. Só me lembro vagamente de um aluno franzino, calado, sem história. O que tenho aqui no livro é apenas a sua primeira matrícula. Passados seis anos, só cá tem escrita uma passagem da segunda para a primeira série. Mais nada.”

Pedimos que nos deixasse consultar os livros de registo de frequência, as listas de constituição das turmas. Com alguma relutância, acedeu. Se era para um estudo… 

Dos oito anos que o Paulo havia frequentado a escola, o seu nome somente constava de duas turmas, ambas do “primeiro ano” e separadas por um hiato de sete anos. Nunca tivera lugar certo onde se sentar, caderno que não perdesse em poucos dias. O Paulo foi o exemplo típico de “aluno fantasma”. Para todos os efeitos, ele nunca existiu, como confirmou uma docente:

“Não admira que não aprendesse. Era um caso perdido. Passava o tempo todo a dormir ao fundo da sala. Tal e qual os irmãos dele!” 

Decorridos alguns anos, voltámos à mesma escola. A senhora diretora era outra. Das professoras, que encontrámos na anterior visita, apenas uma restava. Confidenciou-nos que até tinha tentado a dispensa de componente letiva por desgaste nervoso. À saída, perguntámos pelo Paulo. Respondeu: 

“Apanhou dez anos de prisão. É isso que quer saber?”

 

Por: José Pacheco

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