Mogi Mirim, 18 de julho de 2041
Nos idos de vinte, eram frequentes os assomos de ditadura instrucionista. O autoritarismo de algumas secretarias de educação alcançava o ridículo, como é exemplo a “suave” mensagem, enviada a uma escola, no tempo da pandemia (limpei-a de erros de pontuação e concordância):
“Senhor Gestor, estou muito preocupada com a sua escola, que ainda está com percentual de 16% de manifestação de interesse nos “Itinerários Formativos”. Solicito que façam grande mobilização dos alunos, para se manifestar, visto que o prazo se encerra, amanhã. Obrigada”.
Os “Itinerários Formativos eram mais uma peça do intrincado puzzle instrucionista e a secretaria de educação ainda não entendera, ou não quisera entender, que aquela escola encetava caminhos de desvinculação desse modelo. Os professores daquela escola assumiam dignidade profissional, na procura de modos de a todos garantir o direito à educação, que as medidas de política educacional da secretaria não garantiam. Aquela escola empreendera caminhos de autonomia, que a secretaria contrariava em mensagens torpes e toscas, como esta:
“A autonomia das UE s estaduais quem define é a SEDUC”.
Hoje, a autonomia é um fato. Mas, nos idos de vinte, os burocratas consideravam estar acima da lei. Talvez não tivessem lido o conteúdo da meta 19 do Plano de Educação:
“Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto”.
Ou talvez sofressem de analfabetismo funcional na interpretação do artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
“Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público”.
No contexto da escola da modernidade, a burocracia negava às escolas o exercício da autonomia. A OCDE nos avisava: como harmonizar um projeto de autonomia com um modelo de escola instrucionista e bases curriculares absurdas? A introdução Base Nacional Curricular Comum brasileira estava eivada de princípios caraterísticos do paradigma da aprendizagem. Mas, as secretarias de educação mantinham-se ancoradas em retrógrados regulamentos instrucionistas. Urgia erradicar a conivência com procedimentos que, mais do que pedagogicamente obsoletos, se apresentavam como ilegais, antiéticos.
Se Ovide Decroly nos dissera que os centros de interesse da criança deveriam ser determinados de acordo com as necessidades primordiais da criança, como entender que as crianças – todos os alunos e no mesmo ano de escolaridade – tivessem de seguir um currículo pronto a vestir, igual para todos, sem a definição de aprendizagens essenciais?
A introdução da base curricular reproduzia o sofisticado discurso contemporâneo das ciências da educação. Mas, se John Dewey nos apontava o erro mais grave do paradigma da instrução, que consistia na separação entre o saber e a sua aplicação, como entender que os autores da lamentável base curricular se assumissem como neo-escolanovistas e “dessem aula”? Como aceitar que as secretarias de educação obrigassem os professores a “dar aula”? Cadê o cumprimento da lei?
A hecatombe escolar, profetizada a meio do século XX, se consumava nos idos de vinte deste século, por força de uma cultura educacional arcaica.
Por: José Pacheco
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