Cachoeira dos Pretos, 21 de julho de 2041
Em tempos, vos falei do meu baú das velharias. Hoje, nele achei uns papeis amarelecidos por “kronos”, o tempo que mede, o tempo cronológico, o sequencial. Não sei se vos recordais desse material fibroso, de origem vegetal, que tinha a forma de folhas ou rolos e que foi muito utilizado até à revolução 4.0, para escrever, desenhar, imprimir. Para que se saiba, esses papeis, quando retirados do fundo do baú, apesar de amarelecidos, me permitiram ler algo que o tempo não amareleceu, se manifestariam atuais, no julho de 2021, quando o vosso avô manteve uma querela com professores, palestrantes e pesquisadores adeptos de uma “inclusão não praticante”.
A Declaração de Salamanca completara vinte anos, sem que se fizesse cumprir. Nos inúteis debates, que se seguiram, usei os mesmos textos, que redigira na Ponte, nos idos de setenta do século passado. Os papeis do fundo do baú incluíam diálogos, que acabaram publicados em livrinhos, já no início deste século. Vos darei a conhecer alguns. Mas, antes, vos darei conhecimento de uma mensagem da minha amiga Débora, que encontrei escondida entre os velhos papeis, encimada pelo título “Os alunos de ninguém”.
“Gostaria de caracterizar esses alunos, mas penso que não existam pesquisas relacionadas a coisas que não existam, que não possam ser padronizados e não se enquadram em nenhum sistema pré-estabelecido, já que se parecem com meros fantasmas, que perambulam pelas escolas, por seus corredores sombrios e ameaçadores, sentados em carteiras enfileiradas, engolindo conteúdos que não fazem sentido algum para alunos de ninguém.
Ele corre pelo ar, como se quisesse explodir seus sentimentos. E percebe que não tem nenhum lugar a chegar, pois não tem um local para ele. Grita, chora, esperneia, joga cadeiras, morde, bate, se cala, olha para o nada.
O aluno de ninguém está lá, perdido no tempo e espaço de um local que não lhe significa nada, pois ele não se senta, não pega direito no lápis, não desenha a letra direito, não decifra aquilo que lhe parece um hieróglifo. Ma,s ele está lá, com todo um potencial que é único, uma aprendizagem que é só dele, a ser dividida com o outro. O aluno de ninguém é um fantasma, que assombra o conhecimento, o conteúdo e o que professa. Assombra até mesmo a ele, pois não compreende o que tem que fazer, e quando se depara com o papel em branco e alguém falando em uma linguagem anglo saxônica ele se desespera, sua, treme, tem dor de estomago, vomita. Ele precisa preencher aquela folha em branco, para ninguém olhar, avaliar, reelaborar, apontar caminhos, mesmo que encruzilhadas, para que ele possa escolher qual estradinha percorrer. E, se não chegar a lugar algum, ele saberia de onde retomar.
O aluno de ninguém acaba desistindo de ser de alguém, já que ninguém o ouve, ninguém o percebe. Pode ele gritar, jogar cadeiras, se arranhar, que ninguém o perceberá como alguém, até que pode chegar o momento em que o aluno de ninguém se cala, adoece e se perde nos seus próprios sentimentos.
Cansei de falar que o professor tem que mudar, mas não perderei a esperança de dar voz ao aluno de ninguém.”
A inclusão não poderia acontecer a qualquer preço, mas, já no julho de 2016, a Cecília encontrara e recuperara “alunos de ninguém”. Quando ela chegou à São Jorge, encontrou crianças analfabetas, que lhe disseram:
“Tia, é melhor desistir. A gente não vi aprender a ler. A gente é burra. Foi uma professora que disse.”
Felizmente para esses e outros “alunos de ninguém”, havia professores que não desistiam de olhar para o ser humano aos seus cuidados como um aluno de alguém.
Por: José Pacheco
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