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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCV)

Cachoeira dos Pretos, 19 de julho de 2041

Nos idos de vinte, um ambientalista de onze anos de idade de nome Francisco recebia ameaças de morte, só porque reivindicava uma melhor educação. Em regimes autoritários, ou “mais ou menos democráticos” da América do Sul, eram frequentes as ameaças feitas a quem defrontasse pequenos tiranos na versão adulta. 

Participei em muitos atos de desagravo e de proteção dos sem medo, que rompiam coniventes silêncios. Um desses maravilhosos seres humanos era pequeno em estatura física, mas era enorme a sua estatura moral e a sensibilidade perante graves problemas, que afetavam a sociedade desse tempo. 

As pessoas de bem interpretaram a demanda do Francisco como mera defesa do meio ambiente, de uma melhor educação ambiental. Contudo, a fala desse jovem espelhava consciência de que toda a educação deveria ser ambiental, ou não seria educação.

Decorria o cinzento tempo da pandemia da Covid-19 e o colombiano Francisco Vera era reconhecido pela ONU por seu ativismo, e, no seu país, pelas suas campanhas ambientais e pela defesa dos direitos das crianças. Após publicar um vídeo, pedindo ao governo que melhorasse a conectividade à internet para crianças que estudavam online, recebeu uma ameaça de morte numa conta anônima do Twitter. 

A ONU entregou pessoalmente uma carta a Francisco, parabenizando-o por seu trabalho pioneiro no país sul-americano, onde não era incomum a morte de ativistas ambientais. Talvez ainda possais encontrar registro de falas do Francisco na velha Internet. Aqui vos deixo o endereço de um dos vídeos feitos em 2021: https://www.youtube.com/watch?v=yAaRvfofTjs

No movimento de solidariedade para com o Francisco, acolhi mensagens de gente amiga, que passo a transmitir-vos:

“Muito lindo e esperançoso. A Consciência transmutará e o planeta renascerá. Sou uma otimista… E olhando para as Crianças, ainda mais. Esse “jovem”, entre tantos outros anônimos desse mundo vasto mundo está aí a nos alertar da importância ímpar de se preservar a natureza. Tenhamos ouvidos de ouvir, olhos de ver, vozes de falar e mãos de fazer algo em prol de nós próprios – humanidade.” 

“Seria mera coincidência esta criança se chamar Francisco? Fiquei impressionada com o nível de consciência numa criança ainda tão jovem. E como ele mesmo ressalta o protagonismo dos jovens. Urge salvar nosso planeta! Antes, porém, precisamos de governantes sensatos, conscientes da gravidade da situação e que sejam verdadeiros líderes! Confio pouco nos líderes da ONU e no nível de comprometimento desumano que os consubstancia. Temos de ser nós (individual ou em células) a agir. Não podemos esperar por “outros” que não nos têm representado; que dão por um lado e tiram por outro. Temos que agir; sem Rendição!”

“Grato por esse alento de esperança no porvir! Precisamos de seres humanos solidários que tenham empatia e realmente se importem com seu próximo. Nós, populações indígenas, estamos fazendo nossa parte. Porém, com os massacres que sofremos, se torna uma luta desigual. Precisamos que as pessoas não-indígenas se conscientizem e possam unir forças às nossas batalhas, que a nossa luta é pela vida. A natureza, o planeta e todos os seres, fazemos parte do mesmo ciclo divino da vida, onde o respeito tem que ser primordial. Abraço, professor fraterno meu velho amigo! Se cuide. Apesar de vacinado, estou me recuperando do Covid. A vacina salva vidas!”

Como vedes, se concretizava o dito de Saint-Exupéry:

“A pedra não tem esperança de ser outra coisa que não pedra. Mas ao colaborar, ela congrega-se e torna-se templo”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCIV)

Mogi Mirim, 18 de julho de 2041

Nos idos de vinte, eram frequentes os assomos de ditadura instrucionista. O autoritarismo de algumas secretarias de educação alcançava o ridículo, como é exemplo a “suave” mensagem, enviada a uma escola, no tempo da pandemia (limpei-a de erros de pontuação e concordância):

“Senhor Gestor, estou muito preocupada com a sua escola, que ainda está com percentual de 16% de manifestação de interesse nos “Itinerários Formativos”. Solicito que façam grande mobilização dos alunos, para se manifestar, visto que o prazo se encerra, amanhã. Obrigada”.

Os “Itinerários Formativos eram mais uma peça do intrincado puzzle instrucionista e a secretaria de educação ainda não entendera, ou não quisera entender, que aquela escola encetava caminhos de desvinculação desse modelo. Os professores daquela escola assumiam dignidade profissional, na procura de modos de a todos garantir o direito à educação, que as medidas de política educacional da secretaria não garantiam. Aquela escola empreendera caminhos de autonomia, que a secretaria contrariava em mensagens torpes e toscas, como esta:

“A autonomia das UE s estaduais quem define é a SEDUC”.

Hoje, a autonomia é um fato. Mas, nos idos de vinte, os burocratas consideravam estar acima da lei. Talvez não tivessem lido o conteúdo da meta 19 do Plano de Educação:

“Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto”.

Ou talvez sofressem de analfabetismo funcional na interpretação do artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:

Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público”.

No contexto da escola da modernidade, a burocracia negava às escolas o exercício da autonomia. A OCDE nos avisava: como harmonizar um projeto de autonomia com um modelo de escola instrucionista e bases curriculares absurdas? A introdução Base Nacional Curricular Comum brasileira estava eivada de princípios caraterísticos do paradigma da aprendizagem. Mas, as secretarias de educação mantinham-se ancoradas em retrógrados regulamentos instrucionistas. Urgia erradicar a conivência com procedimentos que, mais do que pedagogicamente obsoletos, se apresentavam como ilegais, antiéticos.

Se Ovide Decroly nos dissera que os centros de interesse da criança deveriam ser determinados de acordo com as necessidades primordiais da criança, como entender que as crianças – todos os alunos e no mesmo ano de escolaridade – tivessem de seguir um currículo pronto a vestir, igual para todos, sem a definição de aprendizagens essenciais? 

A introdução da base curricular reproduzia o sofisticado discurso contemporâneo das ciências da educação. Mas, se John Dewey nos apontava o erro mais grave do paradigma da instrução, que consistia na separação entre o saber e a sua aplicação, como entender que os autores da lamentável base curricular se assumissem como neo-escolanovistas e “dessem aula”? Como aceitar que as secretarias de educação obrigassem os professores a “dar aula”? Cadê o cumprimento da lei? 

A hecatombe escolar, profetizada a meio do século XX, se consumava nos idos de vinte deste século, por força de uma cultura educacional arcaica.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCIII)

Ilha Comprida, 17 de julho de 2041

No início dos anos 70, com o desaparecimento de Salazar da cena política portuguesa, a ditadura entrou num período de democracia mitigada, durante a qual movimentos pedagógicos ressurgiram. Que me seja permitido contar uma história desse tempo, passada nos cafundós do Portugal. E falar de uma Maria, que tinha fé na vida e na possibilidade de remissão dos pecados da escola.

Tentava formar uma equipe de projeto e os seus alunos aprendiam mais, e bem melhor do que no tempo em que escutavam aula. Mas outros alunos eram perseguidos por funcionários e repetidamente castigados com a “proibição de ida ao recreio”. 

Indagando o porquê da situação, tomou conhecimento de que a diretora da sua escola só ia à escola dois dias por semana. Nos restantes dias, a turma da diretora era entregue aos cuidados de uma faxineira. 

Quando procurou saber o porquê dos gritos da desesperada funcionária, foi-lhe dito: 

“A senhora diretora é vendeira”.

Isso mesmo, queridos netos, tal e qual lhe foi respondido. Embora possa parecer inverossímil, o fato é que a senhora diretora deixava a sua turma entregue a uma auxiliar de ação educativa e ia vender frutas e legumes em cidades da região. 

Numa reunião de conselho escolar, a Maria ousou chamar a atenção da diretora para as consequências da sua atitude, responsabilizando-a pelas escassas aprendizagens dos alunos, pelo sofrimento da faxineira e pelo perturbador barulho provindo da sala da ausente diretora. 

Para que se entenda o cenário do drama, explicarei o que era um conselho escolar. Nas manhãs de sábado, dado que cada qual se refugiava na solidão da sua sala de aula, não havia assunto de conversa comum. As professoras controlavam o tédio de três horas de reunião, tricotando, comentando episódios de novela das oito, ou comprando produtos de beleza, que a diretora também vendia.

A inusitada interpelação da Maria provocou forte reação da diretora: 

“Não lhe admito impertinências! Quem manda aqui sou eu! E não lhe devo explicações!”

E por ali se quedou o quiproquó, concluindo-se a reunião com a rotineira assinatura da obrigatória ata, feita de assuntos que as professoras presentes sempre se encarregavam de inventar. Naquele sábado, a Maria registrou na ata a resposta dada pela diretora à sua interpelação.

Em meados de dezembro, as professoras foram celebrar o Natal junto das suas famílias. Em janeiro e como era costume, todas assinariam o livro de ponto, dado que não se tratava de gozar “férias de Natal”, mas de uma interrupção de atividade letiva. 

Por acaso, ou talvez não, a diretora leu a ata. Furiosa, consultou aliados, na secretaria de educação. Aconselharam-na a chamar à escola as professoras, durante o período de “férias”, para que subscrevessem uma nota de repúdio pelo desacato cometido pela Maria e a juntassem à ata, acompanhada de uma declaração de apoio à senhora diretora. E todas foram avisadas de que deveriam assinar o ponto dos dez dias de “férias”. Todas… exceto a Maria. 

No retomar das aulas, a Maria encontrou a sua folha de ponto “trancada”, com dez faltas “a vermelho”, e foi informada de que seria objeto de processo disciplinar, “por ter faltado à escola durante duas semanas”. 

Durante o período de suspensão com que foi punida, os dias da Maria foram feitos de insônia, de choro, de doses maciças de ansiolíticos e frequentes visitas ao psiquiatra. Após uma longa via-sacra, mudou de profissão. 

Entretanto, misteriosamente, o livro das atas levou sumiço. E a senhora diretora continuou sendo vendeira, mantendo um segundo emprego, o de professora, um dia por semana.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCII)

Praia Grande, 16 de julho de 2041

Por volta de 2010, um relatório do Banco Mundial estimava que o Brasil fosse demorar 260 anos para atingir o nível educacional de países desenvolvidos. Apontava que o país tinha “avançado a passos muito lentos”. A conclusão mais importante do relatório era de que havia uma crise de aprendizagem e que a educação do Brasil estava em crise, pois, no “último Pisa, o país não aumentou sua nota em Leitura e caiu em Matemática”

O ministério da educação não quis comentar o conteúdo do relatório. Apenas um economista brasileiro do Banco Mundial se pronunciou, dizendo que a flexibilização do currículo e a diminuição do número de disciplinas deveriam deixar a escola mais atrativa para os jovens. E que o MEC produzia reformas, como a do ensino médio, que poderiam servir para se atingir níveis de países desenvolvidos. 

O ingénuo economista falava por falar, sem saber o que dizer. Como mais tarde se verificou, tais reformas não afetariam o insano rumo da ministerial política.  Mas a presidente do Movimento Todos pela Educação, certamente, saberia o que dizer, pois afirmava que o Brasil precisava, urgentemente, de um plano estratégico de educação. Acrescentava que os avanços do país eram lentos porque não se sabia quais seriam os fatores de fracasso das políticas:

“A gente abandona as políticas e recomeça do zero sem ter aprendido nada com o passado”

Lendo o relatório do Banco Mundial, notei que essa respeitável instituição não sabia que a melhor educação do mundo estava no Brasil. Porque, quer o banco, quer o ministério, nada sabiam da educação necessária. A educação do Brasil dessa época vegetava entre o desperdício de fortunas no financiamento de sofisticados projetos, sob a égide do protagonismo juvenil, do empreendedorismo, ou outros modismos, ignorando, ostracizando aquelas escolas que poderiam tirar o Brasil da penúria educacional. 

Nos idos de vinte, num breve périplo, visitei algumas dessas escolas. No litoral sul de São Paulo, Praia Grande me deu a conhecer um dos projetos de efetiva excelência acadêmica e inclusão social: a Escola Atenas

Numa manhã de intensa aprendizagem, escutei intervenções do Ricardo e da Cecília, jovens de tenra idade manifestando mais sabedoria do que um adulto instruído. Muito aprendi na escuta de intervenções de pais que, por verdadeiramente amarem os seus filhos, os confiaram a educadores como a Ilka, que também verdadeiramente amava os seus alunos. Convivi com professores ávidos de mudança. Agradeci e me disponibilizei para os ajudar.  

Uma mutação genética acontecia no sistema educacional dos idos de vinte, uma inovação desejada por professores éticos e pais participativos. Ainda eram poucos, mas conscientes de que um dos fatores do fracasso educacional era a tradicional separação de instituições, que deveriam convergir num objetivo comum: garantir a todos os cidadãos o direito a uma boa educação. 

Até ao início deste século, era convicção generalizada de que à família competia educar e à escola instruir. Nesse tempo, nem a família educava, nem a escola instruía. A família terceirizava a educação da criança na televisão, no prédio da escola, na Igreja, na Internet. 

Já nem se usava chupeta, para calar o choro da criança – a família entregava-lhe um laptop. Cedo, ela desenvolvia os polegares e se transformava num monstrinho de tela de computador. Mesmo que a escola adotasse práticas centradas no aluno, o jovem cresceria para ser um ser autocentrado, adestrado para ferozes competições na selva humana que o esperava.

Felizmente, havia escolas como a da Ilka.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCI)

Quilombo do Campinho, 15 de julho de 2041

Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) foram parte de um projeto educacional concebido por Darcy Ribeiro. Tinha como objetivo oferecer ensino público de qualidade em período integral. Darcy considerava-os “uma revolução na educação pública do País“. 

Os CIEP’s talvez tivessem sido prenúncios de comunidades. Esses edifícios escolares deveriam funcionar em tempo integral, num horário entre as oito e as dezessete horas, oferecendo oportunidades de aprendizagem do currículo regular, bem como estudos dirigidos, educação físico-motora, atividades culturais e recreativas,. 

No segundo governo de Brizola, alguns CIEPs foram equipados com piscinas. E forneciam refeições completas, além de atendimento médico e odontológico. Visava-se tirar crianças carentes das ruas, oferecendo-lhes “pais sociais”.

Sucessivos desgovernos não deram continuidade ao projeto, desvirtuando a sua principal característica: a educação integral. Os CIEPs tornaram-se escolas comuns, com o ensino em turnos. Alguns, parcialmente concluídos, foram abandonados. Para melhor compreensão do projeto e da incúria do poder público, sugiro que possais ler um textinho chamado “Cieps: a educação como prioridade”.  

Nos anos sessenta, os jornais do Rio registraram uma saudável polémica entre Darcy e Lauro. Apesar de reconhecer a genialidade do projeto arquitetônico concebido por  Niemeyer, o mestre Lauro aconselhava que o projeto do Darcy não se limitasse a um exercício de “pedagogia predial”

Sempre que eu passava a Puruba, a caminho de Trindade e Paraty, parava no restaurante do Quilombo do Campinho. Mas, não visitava o prédio da escola, enquanto a memória de Darcy ali não fosse celebrada. Porque, ao sonho do visionário Darcy, Lauro acrescentava uma proposta teórica esboçada no livro “Escola de Comunidade”, publicado na década de 1960. Somente trinta anos depois, os anglo-saxônicos e os catalães conceberiam as suas “comunidades de aprendizagem”, misturadas  com contraditórias práticas do sarro instrucionista. 

Há cerca de trinta anos, partilhei o quotidiano de quilombos e de comunidades indígenas. Com tristeza, vi como a escola instrucionista as descaracterizava. As práticas escolares não tinham por referência um território singular. Não questionavam, nem criticamente superavam a forma escolar e a sua tendencial extraterritorialidade. A aprendizagem era encarada, quase exclusivamente, num registro didático e técnico. 

Pensar em “território educativo” deveria ser pensar em uma ação educativa intimamente relacionada ao contexto social no qual a escola se inseria. Como pensar uma comunidade sustentável e uma gestão pública compatível com os desafios de transformação necessária a uma nova forma de relação do cidadão com o seu habitat? A resposta seria: com uma nova educação para uma nova cidade. 

Pensar uma educação de boa qualidade pressupunha integrar múltiplas dimensões da atividade humana no ato de educar e de aprender, bem como rever o modo como o subsistema de educação propiciava ao ser humano a expressão criativa e o protagonismo na vida social.

Enquanto, para alguns, essa utopia era um ideal inatingível; para outros, trata-se de uma meta a ser concretizada, de um sonho perfeitamente realizável. A superação do paradigma instrucionista era uma utopia necessária. Há mais de um século, educadores se dedicavam a efetivar práticas educativas autônomas, sustentáveis, favoráveis à formação de seres humanos integrados à vida, criativos, solidários, felizes. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXC)

Mogi Guaçu, 14 de julho de 2041

No périplo de julho de 2021, a Fabi me levou de Lorena para Mogi Guaçu. Lá, esperava-me a hospitalidade do Serginho, a surpresa do cuidado posto pela Fabi e pela sua equipe numa escola recuperada da depredação que a gestão anterior operara. 

A “Luma” cheirava a café e gentileza. Numa manhã auspiciosa, uma quase-comunidade me esperava. Apenas faltava que as “autoridades” percebessem de que ali estavam educadores e educadoras decididos a colocar a educação de Mogi Guaçu no século XXl.  Na “Luma” e em outras escolas, um novo modelo educacional tomava forma, com intensa participação comunitária. De uma nova visão de mundo emergia uma nova cultura profissional. Professores se libertavam de longos anos de menoridade profissional.

Essa menoridade estava bem patente mesmo em frente à escola onde nos reunimos. Era uma visível evidência de um dos efeitos colaterais das práticas instrucionistas. A falência do modelo educacional imposto pelas secretarias de educação estava escancarada numa fotografia, que guardei no álbum dos absurdos e que junto a esta cartinha. A foto tem vinte anos, está amarelada pelo tempo, mas nela ainda se consegue ler: 

“Dificuldade nas aulas online do seu filho? Nós temos a solução!”

Durante a pandemia dos idos de vinte, os professores padeciam da preparação e da transmissão de inúteis e onerosas aulas online. Empresas oportunistas tiravam proveito do cansaço sentido pelas famílias, embora fossem úteis, quando agiam como abutres, alimentando-se da putrefação do sistema de ensino e da desqualificação profissional dos educadores. 

A crise de profissionalidade se refletia em pequenos gestos e circunstâncias. Se havia professores que, assistindo a uma palestra, se atropelavam ao falar e sussurravam ao pé do ouvido do colega do lado, como se poderia exigir dos seus alunos, em situação de sala de aula, o levantar a mão, para solicitar a sua vez de falar? Se educar é dar exemplo e imitar…

Essa postura de cidadania básica não era comum no decurso de reuniões de professores. E a incoerência gerava situações de embaraço: 

Ó professora, faça o favor de jogar fora a pastilha elástica. Nós somos proibidos de a usar”!

O projeto da “Luma” era anúncio de um novo tempo para a Escola. Num “círculo de aprendizagem”, escutei dúvidas e preocupações. Naquela manhã, a “Luma” acolhera educadoras e educadores que, nos anos seguintes provariam que uma escola já não era um edifício inspirado em conventos, quarteis e prisões, que tomavam consciência de que os edifícios escolares deveriam constituir-se em ágoras, nodos de redes de aprendizagem. 

Os muros, que cercavam as escolas dos idos de vinte, não eram apenas barreiras físicas. Eram expressão de incapacidade, por conta de um determinado modelo educacional, de criar uma relação orgânica com o contexto social e físico. Os muros, as câmeras de vigilância, a portaria vigiada, transformavam a escola num “gueto cultural”. Essa insularidade não provinha da existência de barreiras físicas, mas da incapacidade de integração comunitária. 

Abertos, ou fechados, os prédios das escolas dos idos de vinte eram “bunkers” protetores dos perigos evidentes ou imaginários, que a comunidade de contexto representava, quando, há mais de dois séculos, Pestalozzi já nos dizia que a escola era apenas “um momento da educação”. Que a casa e a praça eram “os verdadeiros estabelecimentos pedagógicos”. 

Em breve, vos falarei do modo como a Fabi encarou a dura tarefa de integrar socialmente a escola e de a limpar da corrupção e outras violências, que por lá encontrou.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXIX)

Lorena, 13 de julho de 2041

O Brasil dos idos de vinte fez uma leitura errada da proposta de Illich. A “desescolarizacão” que ele propunha chegou num tempo em que movimentos “alternativos” procuravam espaços “alternativos e famílias “alternativas” buscavam proteger os seus filhos da nefasta influência da escola instrucionista, quer fosse pública, quer fosse privada. 

Havia gente que não se contentava com montessorianas, ou waldorfianas escolas. Havia quem migrasse para o mato, em versões “hippies”, neo-libertárias, aderentes a tradições espirituais oriundas do Oriente, ou simplesmente “marginais ao sistema”. 

Assisti, acompanhei e até ajudei a criar algumas dessas “comunidades”. Admirava o idealismo posto na decisão de se automarginalizarem. Mas, convida-os a se abrirem à conciliação da sua legítima atitude com a necessidade de não “acabar com a escola”. 

Netos queridos, vos explicarei o porquê do meu afã. Eu fora professor de escola pública por mais de meio século. E pensava ter entendido a mensagem de Ivan Illich. Ele não pretendia acabar com a escola, mas desescolarizar a sociedade.

 Não se trataria de deslocar a atividade escolar para outros espaços, escolarizando ainda mais a família e a sociedade, mas de desenvolver a percepção dos territórios como elementos educadores, por meio dos quais se aprendesse participando de transformações pessoais e sociais. 

Por que não se prestava maior atenção à intervenção no pré-natal e nos cuidados até aos quatro anos de idade, na partilha da responsabilidade de educar, nomeadamente na interação com a área da saúde e no convívio das crianças dos jardins de infância com os avós? Por que não considerar as escolas como espaços públicos, nodos de redes comunitárias, devolvendo as escolas às comunidades?

Buber dizia-nos que existia uma constante renovação entre o real e a representação do real, que fazia com que o elo fundante de uma comunidade estivesse para além do campo dos dogmas e das regras. Buber falava de uma “lei intrínseca da vida”, de um processo criativo, em permanente fase instituinte, que respeitava as tensões entre subjetividades. 

A escola com projeto poderia ser espaço e tempo de construção de comunidades. Um projeto humano seria sempre um projeto coletivo, numa escola que agisse como um dos nodos de uma rede, possibilitando a partilha de conhecimento real ou virtual, redesenhando mapas e trajetos da aprendizagem.

No julho de há vinte anos, fui com a Fabi até à “Ser Stella”. Depois de a Giovana me apresentar a horta, nos apresentamos num círculo de amena conversa. 

Com a Maria, a Helena, a Daniela, a Juliana, o Amaral, aprendi a saber cuidar. Voltava a Lorena, após longa ausência. Projetos dispersos abriam caminhos para uma educação integral, aquela que contemplava o domínio intelectual, mas também o afetivo, o emocional, o ético, o estético. Ali, respirava-se amorosidade, pois, como dissera o Pássaro Encantado, quando se falava com amor, cada palavra que se dizia era uma revelação daquele que falava. Ali se sentia a suave presença do Mestre Morin:

“O amor faz parte da poesia da Vida. A poesia faz parte do Amor da Vida. Se o amor expressa o ápice supremo da sabedoria e da loucura, é preciso assumir o amor. Se a poesia transcende sabedoria e loucura, é necessário aspirarmos a viver o estado poético e assim evitar que o estado prosaico engula nossas vidas”.

E o que andava a fazer este português, fora de casa? A causa da contínua peregrinação se mantinha, mas era chegado o tempo de viajar por dentro. O amor se transmutara em coragem. O tempo do ódio chegara ao fim.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXVIII)

Perequê-Açu, 12 de julho de 2041

Hoje, o mestre Anísio completa 141 primaveras (acredito que os imortais vivam em eterna primavera). Nos idos de vinte, celebrávamos o seu centésimo vigésimo primeiro aniversário, trocando mensagens com educadores amigos, comentando a extraordinária obra que ele nos legou. 

Vivíamos um tempo sombrio, semelhante àquele em que o Mestre foi (fisicamente) silenciado. Nesse tempo, eu convidava à reflexão, para tentar entender o que poderíamos fazer com aquilo que fizeram de nós. Também procurava saber onde encontrar lugares de sã aprendizagem, como instituir espaços de fraterna convivencialidade, recriando a escola pública. Assim a definira Anísio, há já mais de um século.

Tristes tempos foram aqueles do início dos anos vinte! Mas, também foram tempos de observância ao pensamento de Anísio Teixeira para a educação de Brasília:

”Fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem andar muito para alcançá-las.”

Anísio recomendava a pesquisa nas bibliotecas e a reorganização dos tempos escolares, para garantir o princípio da integralidade defendido no “Currículo em Movimento da Educação Básica”:

“O território não se limita ao espaço geográfico, mas a abrangência dos efeitos sociais e políticos em que o indivíduo esteja inserido. O estudante não é só da professora ou da escola, e sim da rede, da Cidade”. 

“A cidade pode constituir-se espaço educador, que possibilita o encontro dos sujeitos históricos, criando espaços, tempos e oportunidades educacionais. A formação dos indivíduos não se restringe ao espaço físico escolar; é uma proposta que integra a vida comunitária, o envolvimento e a articulação de todas as instituições e associações públicas e privadas, que tornam a educação pública, de fato, um direito subjetivo, conforme estabelece a Constituição Federal”. 

Extraí este naco de prosa de uma publicação da Secretaria da Educação do Distrito Federal. A “Escola Candanga” fora uma proposta lançada na segunda década deste século. Nos idos de vinte, a mesma secretaria a contrariava. Serventuários do regime do medo não hesitavam em recorrer a medidas manchadas com sinais de ilicitude. Entre o desprezo pelos ideais de Darcy e a sonegação de preceitos contidos num documento, que dava pelo nome de “Escola Candanga”, se esvaíram esforços de a todos assegurar o direito à educação.

As propostas do mestre escolanovista eram sistematicamente contrariadas. Com indícios de falsidade ideológica, se limitava o exercício de aprender à sala de aula, onde a aprendizagem não acontecia. Restava “ver o copo meio cheio”. Ainda em tempos sombrios, de que hoje resta uma vaga memória, despontavam pontos de luz anunciadores daquilo que, na década de trinta, plenamente se concretizaria. 

Em Uberaba, a minha amiga Lívia provava ser possível que a academia alinhasse as suas práticas com uma educação do século XXI. Com outros educadores, experienciava caminhos de novas e efetivas aprendizagens, praticando tutoria:

“Hoje atravessamos o oceano e fomos para a Angola, na nossa mãe África. A Ana Letícia queria aprender e o Sandelson tinha o que partilhar. Então, ele nos presenteou fazendo parte da tutoria de hoje”.

A Universidade acordava de um longo sono, se assumia como uma das responsáveis pelo caos educacional. Ensaiava novas práticas, ainda ia a tempo de se redimir de erros e omissões. A transformação da educação ultrapassava o âmbito restrito do prédio da faculdade, ia além de um digital domesticado, no estabelecimento de redes de fraterna cooperação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXVII)

Puruba, 11 de julho de 2041

Ao longo de mais de cinco décadas, envolvido na criação de comunidades de aprendizagem, cansei-me de assistir à destruição de projetos, por via de caprichos de governantes, da incompetência de funcionários, da sanha persecutória de récuas burocráticas. A falta de conexão com as necessidades e realidades glocais não prejudicava somente o desenvolvimento cognitivo dos jovens – afetava negativamente o exercício da cidadania, sedimentava a submissão a um modelo excludente de sociedade, de uma sociedade imersa numa crise de valores.

O modo de pensamento burocrático centrava-se na reprodução das relações sociais de produção, enquanto o modo de pensamento comunitário se centrava nas relações sociais e de produção como um todo. O primeiro, traduzia uma racionalidade instrumental. O segundo, uma racionalidade prática e crítica. 

O burocrata concebia o sistema de relações como axiologicamente neutro. O comunitário afirmava que as relações eram marcadas por valores. O pensamento burocrático impunha um sistema hierárquico de relações, enquanto o pensamento comunitário assentava em relações simétricas, com tomada de decisões compartilhadas. 

Como último elemento de comparação – que se me afigura até como maniqueísta… – refiro que, se o modo burocrático distinguia mestria de papéis ocupacionais, o modo de pensamento comunitário afirmava-se na partilha permanente do saber. Enfim! Li, já não sei onde, que a ética se assemelha a uma reta: a menor distância entre os pontos A e B, onde A é o Ideal e B, a Ação. Deveremos tolerar a incoerência entre o pensar e o fazer, ou aceitar a necessidade de fincar barreiras perante procedimentos moralmente contraditórios e antiéticos? Poderá haver educação em práticas sociais que impedem a assunção de uma vida plena, quando não fazemos aquilo que se pode e sonha poder fazer? 

Nas práticas de gestão dos idos de vinte, estavam ausentes o respeito à diversidade, a coexistência de múltiplas visões, a democraticidade e, à semelhança das práticas de formação, estava ausente a assunção de autonomia, não apenas pedagógica, mas, também, a autonomia administrativa e financeira, condições básicas de melhoria do sistema. 

O discurso se fizera sofisticado e estava eivado de expressões como “gestão democrática”. Mas, que democracia será possível no contexto de uma instituição que negava o direito ao exercício da profissão de professor com dignidade, se submetia o diretor, o gestor, o administrador ao “dever de obediência hierárquica”? De que “gestão democrática” estariam a falar? Que valores basilares estariam em causa?

Num tempo em que a Escola da Ponte começava a deixar de ser uma “escola dos pobres e deficientes”, passando a ser uma escola de todos, um pai, juiz de profissão, confidenciou-me: 

A minha filha aprenderá nesta escola aquilo que outras escolas lhe poderiam ensinar. Mas pode aprender aqui coisas que outras escolas não lhe ensinariam”.

Perguntei:

“O quê?”

Respondeu:

“Você sabe.”

Na sua primeira visita à Escola da Ponte, Rubem Alves deteve-se a observar uma menina, que consultava um dicionário. Perguntou-lhe por que o fazia. A menina respondeu: 

Estou a fazer uma lista de palavras “difíceis” deste texto e a escrevê-las de uma maneira mais simples”

O Rubem insistiu: 

Foi um professor que te mandou fazer essa tarefa?” 

“Não.” – disse a menina – “Eu sei o sentido destas palavras. Mas os meus colegas pequeninos ainda não sabem consultar o dicionário. E eu decidi ajudá-los. Assim, eles compreendem o texto”.

Por aqui se vê que a Ponte era bem mais que uma escola – era um alfobre de cidadania.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXXVI)

Itamambuca, 10 de julho de 2041

Aqui vos deixo um convite à reflexão, após uma ação urgente. Porque, no princípio, era a aprendizagem. Depois, inventaram a Escola, a instituição que Férrière chamou “invenção do diabo”. 

Em 1928, aquele a quem Lourenço Filho chamou de incansável e mais fascinante filósofo da educação renovada publicou a seguinte história:

“Um belo dia, deu o diabo uma saltada à terra e verificou, não sem despeito, que ainda cá se encontravam homens que acreditassem no bem. Como não falta a Belzebu um fino espírito de observação, pouco tardou em se aperceber que essas criaturas apresentavam caracteres comuns: eram boas e, por isso, acreditavam no bem; eram felizes e, por consequência, boas; viviam tranquilas e, por isso, eram felizes. O diabo concluiu, do seu ponto de vista, que as coisas não iam bem e que se tornava necessário modificar isto.

E disse consigo: A infância é o porvir da raça; comecemos, pois, pela infância. E apresentou-se perante os homens como enviado de Deus, como reformador da sociedade. 

Deus – disse Belzebu – exige a mortificação da carne, e é mister começar desde criança. A alegria é pecado. Rir é uma blasfêmia. As crianças não devem conhecer alegrias nem risos. O amor de mãe é um perigo: afemina a alma dum rapaz; é preciso separar mãe e filho, para que coisa alguma se oponha à sua comunhão com Deus. Torna-se necessário que a juventude saiba que a vida é esforço. Façam-na trabalhar; encham-na de aborrecimento. Que seja banido tudo quanto possa despertar-lhe interesse: só é proveitoso o trabalho desinteressado. Se nele se mistura prazer, está tudo perdido!

Eis o que disse o diabo. A multidão, beijando a terra, exclamou: Queremos nos salvar! Que devemos fazer?

Criem a escola.’

Publiquei dois dicionários. Um deles sobre absurdos da educação. Outro sobre utopias. E, como não há dois sem três, fiz um dicionário de valores. Diz-nos o dicionário que valor (do latim valôre) é qualidade de quem pratica atos extraordinários e, eticamente, um princípio passível de orientar a ação humana. Se assim for, convirá seguir o preceito do Dalai Lama: 

Precisamos ensinar, do jardim de infância até a faculdade, que a moralidade é o caminho da felicidade. O sistema educacional moderno presta somente atenção no desenvolvimento do cérebro e não o desenvolvimento moral.”

A escola não é o primeiro lugar para se educar o indivíduo, também não deverá ser o primeiro lugar de o deseducar, mas um lugar e tempo de aprendizagem de valores. Quando, no quadro de uma reorganização curricular, se instituiu “uma hora semanal de educação para a cidadania”, eu questionei os autores da proposta: por que razão não deveriam ser as restantes horas de “educação na cidadania”?

Há cerca de dois anos, os amigos Almerindo, David, Fátima, Ana e outros insignes educadores portugueses subscreveram uma petição, da qual partilho alguns excertos:

Apesar dos princípios consagrados na Lei de Bases, assistimos a uma crescente desvalorização da cultura democrática nas escolas e à anulação da participação coletiva dos professores, dos alunos e da comunidade educativa. Verifica-se, pelo contrário, uma tendência para a sobrevalorização da figura do(a) diretor(a) de escola, sendo subalternizado o papel de todos os outros órgãos e desencorajada a participação de outros elementos da comunidade escolar. Esta situação é reveladora da erosão da identidade de cada escola quando esmagada pelo peso da estrutura de direção unipessoal. 

Este sinal de incômodo foi, também, um sinal de alerta, que parece não ter sido escutado por quem de direito.

 

Por: José Pacheco

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