Santo Isidro de Pegões, 25 de setembro de 2041
Diz-se ser um hábito a predisposição para adoptar um comportamento ou realizar uma determinada ação, repetindo os mesmos gestos, os mesmos atos. É durável e, frequentemente, prescinde do uso da consciência e do exercício da vontade. No reino da educação, foi origem de muitos e nefastos dramas.
Num dos mais negros períodos da sua história, a Escola da Ponte esteve integrada num “agrupamento de escolas”. Foi uma iniciativa desastrosa. A Ponte era minoria, e foi-se instalando o achismo nas reuniões. Regressámos ao grau zero da reflexão.
Registei os “acho que” de uma das reuniões. E, em apenas duas horas, contei dezoito:
“O que eu quero dizer é o seguinte… Então, é assim: quer dizer, portanto, pois… portanto, quer dizer… O que eu acho, na minha opinião pessoal, é que… quer dizer… Eu penso que deve ser assim, porque sempre foi assim. Quer dizer, eu acho que essa ideia é interessante…”
“O que significa “interessante”? – perguntei.
Ninguém respondeu. De surpresa em surpresa, apercebemo-nos de que os professores achistas – alguns já com mais de trinta anos de exercício da profissão – jamais haviam lido um livro. Eram incapazes de alinhavar duas ideias seguidas, ou de explicar por que faziam aquilo que faziam na sua sala de aula. Manifestavam total relutância ao estudo e abominavam qualquer esboço de reflexão. Foi duro constatar tal realidade! Restou-me exercer compaixão.
Emocionado, um dos achistas falava do último episódio da novela da noite, citando de memória títulos de novelas antigas e atores de quem eu jamais ouvira falar. Os professores eram bons conversadores, e eu até poderia deixar que o animado interlúdio se prolongasse. Mas dispunha da prerrogativa de gerir o tempo dessa reunião e tentei colocar um ponto final naquele erudito debate novelístico, propondo que regressássemos ao domínio da pedagogia.
“Ó colega, deixe-se disso! Que coisa chata! A gente precisa é de espairecer!”
Insisti. Pedi que conversássemos sobre referentes teóricos, que enformavam as nossas práticas. Os achistas responderam que “não precisavam de teorias para nada”.
Não porque fosse indispensável conhecer tantos nomes de educadores, quantos os dos atores de novela, mas porque seria injusto desconhecer a herança que nos fora legada por muitos esforçados pedagogos, retorqui, defendendo que toda a prática está, explícita ou implicitamente, associada a uma teoria.
De nada valeu a argumentação. Ficou-me a mágoa de tomar consciência dos efeitos da longa e tenebrosa noite de uma ditadura, que deixou marcas indeléveis numa certa cultura profissional.
Numa outra reunião, foi proposta a análise de um texto do Perrenoud. Os achistas gastaram mais de uma hora a discutir “competências”, com recurso ao mero senso comum pedagógico. Apercebi-me da perturbação dos professores da Ponte, cansados do empobrecimento do debate. E lancei uma pergunta:
“Há mais de uma hora, que estou a ouvir falar de “competências”. Alguém quererá dizer o que entende por “competência”?”
Resposta não houve. Só silêncio e olhares ameaçadores. A dolorosa via-sacra acabou quando a Ponte voltou a ficar só, livre de “agrupamentos”.
Aprendemos com essa experiência que, entre culturas inconciliáveis, o diálogo é de surdos. Ou, como diria o Rui, não se pode amar quem não gosta da mesma canção. E pensar que estes professores estiveram na Ponte. Dentro da Ponte! Devassando-a! Nada entenderam da Ponte. Usaram-na, quase a destruíram. Foram-se, mas o achismo ficou. Foi hibernando e manifestou-se, mais tarde. Mas essa é outra história…
Por: José Pacheco
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