Setúbal 5 de setembro de 2041
Antes que chegasse um setembro de maus augúrios e bons auspícios, alguns mestres da universidade de antanho confessavam surpresa, incômodo, inquietação:
“Eu me esforço para dar uma aula muito concentrada. Mas, ao longo desses anos todos, enfrentei muitas vezes a apatia dos alunos. Os alunos mudaram muito. Não sei o que faria hoje, se tivesse que voltar a dar aula na universidade. Tenho a impressão de que os alunos não me respeitariam nem um pouco. É outra geração, outro tipo de gente. Você precisa de técnicas de como despertar a atenção deles. É difícil, viu? Como lido com a apatia na sala de aula?”
Mais de metade dos docentes não se sentia profissionalmente realizada, não se sentia valorizada e apontava causas do desgaste como: “turmas com elevado número de alunos”, “comportamento indisciplinado”, “desmotivação”, “falta de apoio”.
Não se identificava a raiz do dito “bournout”. Mas, já Bauman falara de uma cegueira moral, de uma cegueira ética, a cegueira daqueles que veem. E Saramago, metaforicamente, referia-se a uma cegueira social, quando apelava ao dever moral dos que enxergavam.
Kant afirmava que o objetivo principal da educação era o de “desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele fosse capaz”. O professor universitário deveria reconhecer que se constituía em exemplo e que a prática da aula não permitia alcançar o desiderato kantiano. Cedo se sentia o embaraço:
“Considero que as minhas primeiras aulas foram uma coisa muito próxima do desastre. Eu me lembro que ouvi muita reclamação. Os alunos reagiram, querendo, enfim, uma mudança daquilo. Mas os outros que davam aula também não eram muito diferentes de mim.
O pessoal gosta de ouvir a aula, mesmo que ela não seja muito agradável ou inteligível. E, aí, entravam esses vícios, não é? E os alunos sentiam isso e absorviam isso como um modo de dar aula. O aluno sente que você está fazendo aquilo burocraticamente”.
A tentação da disseminação em escala de paliativos do instrucionismo e de mostrar efeitos de curto prazo provocavam cegueira branca naqueles que detinham os recursos e o poder de decidir. Mas, o que mais concorria para a manutenção da “escola da modernidade” era o obsceno silêncio dos universitários das ciências da educação. Não denunciavam. Nada anunciavam.
Dirigi-lhes convite para um debate construtivo, fundamentado, fraterno. Em vão o fiz. Alguns eram inacessíveis, pois habitavam o Olimpo da teorização. Outros eram como freirianos não-praticantes. Cultuavam Habermas, Papert, Freire, publicavam literatura de ficção científica, dado que a teorização de teorizações não fertilizava as práticas do chão de escola.
Decorria o mês de maio de 1968, quando Agostinho da Silva assim falou perante os deputados da Câmara:
“Na Universidade, o professor tem sido um sujeito que entra para dar aulas. A Universidade ficou no século XIX e os alunos já estão no século XX”.
Meio século decorrido, a Universidade permanecia vetusta, instrucionista. Milhões de alunos estavam em situação de abandono intelectual. Professores adoeciam. A OCDE promovia inúteis cimeiras sobre o “bem-estar dos professores”. O que se discutia nesses encontros era a manutenção de um profundo mal-estar.
Um secretário-geral afirmou:
“Não se deve perder a oportunidade de colocar o bem-estar dos professores no centro das políticas de todos os países. O bem-estar terá de ser percebido como um tema político de primordial importância”.
Estava eminente o “bem-estar dos professores”, porque já se anunciava o “canto do cisne” da velha escola.
Por: José Pacheco
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