Comporta, 6 de setembro de 2041
Que a memória de idoso não me traia, pois, hoje, recordarei uma conversa entre avô e neta.
A Alice era uma jovem avisada e previdente. Num dos muitos anos de estudos que ainda teria pela frente, do Jardim de Infância à Faculdade de Psicologia, poderia sair-lhe ao caminho um mestre fóssil, como o vizinho Quim, professor na casa dos cinquenta e nostálgico “dos tempos em que a escola era escola, do tempo em que se aprendia a ler e a fazer contas de dividir por dois algarismos logo na segunda classe”.
A Alice queria tirar tudo a limpo, não fosse o diabo tecê-las. E era uma máquina de fazer perguntas:
“Mas por quê, avô? Por quê? Diz-me!”
A Alice fazia as perguntas fundadoras de qualquer reflexão sobre a Escola. Perguntas que, em recuados tempos, poucos ousavam fazer, por quase todos se terem esquecido de que também tinham sido crianças, que também tinham passado pela idade dos porquês.
As perguntas da Alice eram perguntas do senso comum, que não deixavam de ser perguntas de bom senso. A pequena não se cansava de me interpelar sobre usos e costumes. Não lhe escapava mesmo nada.
No intervalo da manhã, escutou uma conversa entre professoras (“por acaso”, segundo ela me disse) e sobressaltou-se com uns zunzuns.
“Ó avô, é verdade que, no teu tempo, as escolas tinham campainhas penduradas nas paredes?”
“É verdade, Alice”.
“E para que serviam as campainhas?”
Como se poderia explicar a um ser inteligente como a Alice o que não tinha explicação? Poderia a Alice acreditar que, nas escolas de antigamente, alunos e professores andavam a toque de campainha? Seria possível que a Alice entendesse as razões pelas quais havia um toque para ir para a aula de Matemática, outro toque que mandava ir para a aula de Ciências, outro toque que reencaminhava corpos para uma aula de História, e por aí adiante?
Pensando em voz alta, murmurei a palavra “aula”. Ó palavra, que disseste!
“O que eram “aulas”, avô?” – disparou a Alice.
“Depois, eu explico” – respondi, tentando ganhar tempo, pois não estava certo de conseguir explicar à Alice o sentido de velhos artefatos como “aula”, “tempo letivo”, ou “carga horária”.
“Está bem, tu depois explicas. Olha que eu não me esqueço! Mas juras que é mesmo verdade que, quando as campainhas tocavam, os meninos tinham de entrar, ou sair, ou chegar, ou ir embora?”
“É verdade, Alice”.
“Mesmo que não lhes apetecesse?” – replicou.
“Sim. Mesmo que não quisessem. Mas não vês que isso era antigamente, minha querida? Não vês que na tua escola já não é assim?”
“Pois! Mas, eu ouvi dizer que ainda há algumas escolas onde…”
“São poucas, que eu sei. Sossega!”
Numa universidade onde decorria um congresso, um “palestrante” aluno da Ponte referiu que, na sua escola, não havia horários iguais para todos. Logo foi interpelado:
“Não acredito! Como é possível não estares colocado num terceiro, ou num quarto ano?”
A criança contestou:
“O senhor não entendeu. O que eu disse foi que na minha escola não se faz como em outras, não se divide os meninos por turmas e por anos. Porque isso não interessa”.
O universitário cortou-lhe a palavra e atirou, num tom a roçar o cinismo:
“Não interessa? Está bem! Vá lá! Diz lá em que ano estás!”
O moço respirou fundo e olhou na direção do seu professor, como quem pergunta: “O que hei-de fazer desta chata criatura?”
O professor encolheu os ombros: “Faz como quiseres!”
E o aluno “palestrante” perguntou:
“O senhor não sabe mesmo em que ano eu estou?”
Triunfante, o universitário usou o imperativo com ênfase redobrada:
“Não sei, não! Diz lá!”
O jovem obedeceu. E disse:
“Estou no mesmo ano em que o senhor está. Em 1996.”
Por: José Pacheco
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