Portalegre, 7 de setembro de 2041

Queridos netos,

O início dos anos vinte foi marcado pela instabilidade política. A administração educacional agia com laivos de autoritarismo, anulando todo e qualquer esboço de inovação. Ao poder constituído de então interessava manter um sistema de ensinagem reprodutor de ignorância. Desprovida de senso crítico, parte da população era manipulada pela praga das “fake news”. Muitos bons educadores se deixavam controlar por uma administração corrupta. Famílias abdicavam de reivindicar para os seus filhos o direito à educação. Sobre milhões desses filhos o Estado lançava o anátema do abandono intelectual. Impunemente!

No agosto de há vinte anos, quando a covid ainda ceifava centenas de vidas e menos de vinte por cento dos brasileiros estavam vacinados, o negacionismo decretava o “regresso às aulas”. Prudentemente, o CNE se manifestara por manter aquilo a que chamavam “ensino remoto”, até ao mês de dezembro. A administração dependente dos caprichos de um ministro excludente fez orelhas moucas à sábia recomendação. Outro ministro da educação admitira que o ensino médio “estava no fundo do poço“.  No 3º ano do ensino médio, só 4% dos alunos sabiam o que deveriam saber no domínio da matemática. O índice de proficiência em língua portuguesa ia pelo mesmo caminho.

Entre os corredores do ministério e os gabinetes das secretarias passeava a corrupção intelectual e moral. Nas escolas, reinava o autoritarismo. Na Internet, a educação passava de direito para mercadoria.

Por esse tempo, me lançaram um desafio. Talvez por malícia, talvez não. Convidaram-me para redigir um prefácio para um livro que dava pelo título de A Arte da Aula. Logo a mim, que me livrara de dar aula, há mais de meio século!

Nunca recusei um desafio. Aceitei-o e agradeci.

Considerei um privilégio me terem sido dados a ler depoimentos de mestres da arte de “dar aula”. Eram exercícios de uma escrita sensível, reflexos de uma tomada de consciência do destino da escola e da necessidade de humanização do ato de ensinar.

Falavam-nos do ofício de professor universitário e das marcas que esse exercício imprimiu nas suas vidas e nas dos seus alunos. Sobretudo, demonstravam uma verdade nem sempre evidente: havia professores que não usavam a pedagogia como mera ciência, mas como a arte de ensinar a viver.

Mesmo exercendo o seu múnus profissional num tempo em que não tiveram que competir com máquinas inteligentes, não ficaram imunes à necessidade de transformação da educação. Apenas se decepcionavam com a falta de interesse de muitos alunos, que, inertes, prenunciavam o surgimento de uma crise de relações humanas, o anúncio da falência de um determinado modelo de sociedade e de escola, que a universidade, desgraçadamente, perenizava.

As omissões das ciências da educação tinham aberto um campo fértil para o aventureirismo negacionista. Num triste setembro dos idos de vinte, uma avenida ficou repleta de bonsais humanos, subprodutos de um modelo educacional imposto por ridículos tiranos. Talvez esse incidente – ou sinal de alarme de aproximação à barbárie – tivesse sido o despertar da consciência da necessidade de gestar uma nova educação para o mundo.

Nesse mesmo setembro, enquanto a UNESCO retomava retóricos debates sobre a “educação do futuro”, essa educação se fez presente, sob a forma de protótipos de comunidades de aprendizagem. Uma nova construção social de educação, a humanização do ato de aprender e de educar, adiada por mais de cem anos, emergia do caos.

Desse e de outros prodígios vos falarei em próximas cartinhas.

Por: José Pacheco