Minde, 13 de outubro de 2041
Há uns trinta anos, eu concluía a escrita de um dicionário de valores, descrevendo o quotidiano de uma escola, que acolhia alunos oriundos de bairros sociais e favelas. Eram jovens castigados pela fome e por outras violências, crianças que abandonavam a escola, jovens expulsos de escolas.
O projeto dessa escola consagrava valores, cuja prática operava o resgate daquilo que tornava os seres humanos mais humanos. A sua práxis permitia aos seus alunos partirem do zero em comportamento para a nota dez em humanidades.
Dizia-nos o dicionário que “valor” era preceito, ou princípio moral passível de orientar a ação humana. Mas, se a Escola foi criada para reorientar a ação humana, para ser um berço de igualdade social, um modelo educacional obsoleto e hegemônico transformou-a num obstáculo ao desenvolvimento humano.
A violência vivida pelos alunos que essa escola acolhia era característica de uma sociedade excludente, que, nesse tempo, muitos professores ainda ajudavam a reproduzir. Mas, embora ainda durasse duas décadas esse padecimento, eram visíveis os sinais de que a velha escola estava prestes a parir uma nova escola. E de que, nesse processo, os educadores mais sensíveis sentiam com mais intensidade as dores do parto.
A escola de que vos falo era nota dez na vivência de valores. A vivência dos valores enformava o caráter, projetava-se nas atitudes. Os educadores que nela
operavam felizes transformações desenvolviam uma “ética universal do ser humano”, como diria o saudoso Paulo. A coerência, que nela se operava entre teoria e prática, reorientava a ação humana e ia dando bons frutos.
O Robson, atento e crítico nas intervenções que fazia durante as reuniões de pais, proibiu a filha de ver a novela. E o filho da Cleide já não assistia às aberrações de um programa chamado Big Brother. O pai do Maique vendeu a bicicleta de ir para o trabalho e ajudou a escola na compra de um violino para o seu filho.
Aos treze anos, quando chegou a essa escola, depois de uma acidentada passagem por outras, o Maique não conseguia pegar num lápis, porque os trabalhos da roça tinham tornado hirtos os seus dedos. E as suas mãos eram calejadas, difíceis de fechar. Dois anos decorridos sobre a sua chegada, já conseguia ensaiar acordes de bachianas partituras, enquanto aprendia noções de Matemática e recebia lições de sensibilidade dos seu tutor e professores. O impulso criativo da juvenil orquestra ganhava raízes no propiciar às crianças a oportunidade do deslumbramento dos sentidos.
Sabemos que a transmissão de valores se dá pela convivência, pelo exemplo, pelo contágio emocional. Por isso, naquela escola, os professores não estavam sozinhos, em salas de aula; agiam em equipe, em múltiplos espaços de aprendizagem.
O Sartre estava certo de que, se não somos responsáveis pelo que fizeram de nós, somos responsáveis por aquilo que fizermos com aquilo que fizeram de nós. Se o professor solitário dava exemplo de individualismo, os professores, trabalhando em equipe, incutiam nas crianças atitudes de cooperação, de solidariedade.
O primeiro passo da conversão necessária consistia em algo simples: que os professores se sentassem à volta de uma mesa, ou na relva de um parque, para cultivar gregarismo, para serem equipe. Sem pressa, como nos dizia a Cecília professora-poeta:
“Os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual, por vezes, nos arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.”
Por: José Pacheco
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