Vila Nova de Poiares 22 de outubro de 2041
Diz-nos o dicionário que dislexia é “perturbação que provoca dificuldades ou incapacidade de compreensão de leitura e escrita”. É causa de fadiga e causa de problemas escolares. Mas de outras “dislexias” vos falarei a seguir.
Volto ao questionável ato de rotular e tratar alunos como “deficientes”. Trago-vos dois episódios, que podem ilustrar uma realidade oculta. Há fenómenos de incomunicabilidade nas nossas escolas, cuja responsabilidade não deve ser imputada somente às escolas.
A Bárbara era uma aluna dita “portadora de dislexia”. A Bárbara “portava” dislexia, como quem “transportava” uma mochila. A professora “especial” passava pela sala de aula da Bárbara, duas vezes em cada semana. Dizia:
“É a minha aluna incluída.”
Foi o que escutei da boca da professora dita de “educação especial”. Mas, lá foi acrescentando:
“Confesso que não sou especialista em dislexias e, portanto, pouco poderei ajudar a professora da Bárbara.”
Até aqui, até poderei desculpabilizar a professora “especial”. Ela discriminava, marginalizava, excluía a Bárbara, ao trabalhar com ela, à margem da aula, dentro da sala de aula, ou num gabinete, onde “aplicava umas fichas” (sic). Mas, creio que assim agia inconscientemente. Nem a Declaração da Conferência de Salamanca tinha sido inventada (nela se dizia que o “especialista” deveria trabalhar em equipe). A professora “espacial” nem sequer conversava com a “titular da turma” (outra curiosa designação da professora da Bárbara). Apenas tivera ensejo de um breve dialogar, no decurso de uma reunião. E se referia à professora da turma do seguinte modo:
“A professora do “regular” diz que faz o que pode, mas que não se espere milagres, porque, com dezanove alunos mais uma “disléxica” na sala, o tempo não chega para tudo.”
A meio de uma manhã, em que já havia interrompido a aula uma dúzia de vezes, para chamar a atenção dos “distraídos” e dos “indisciplinados”, a professora assim se dirigiu “disléxica”:
“Vais ficar sem recreio, porque eu não consigo ler o texto que escreveste!” Resposta pronta da Bárbara:
“Professora, tu não consegues ler, mas eu consigo!”
A Bárbara era disléxica, mas não era parva.
A dislexia existia, a difícil situação defrontada pela professora era real. Havia necessidade de identificar a dislexia a tempo, de modo a que não se convertesse, definitivamente, num obstáculo ao sucesso escolar e à realização pessoal. E, muito mais do que identificá-la, era imperioso que um especialista, no seio de uma equipa, desse resposta às Bárbaras.
Há casos e casos, e bem diferente é o caso do Tito, do Titinho, como a extremosa mamã o chamava. Chegou à nossa escola, acompanhado de um processo com cinco centímetros de altura. Eram relatórios de psicólogos, mais os dos pedopsiquiatras, mais os relatórios das professoras de educação especial, mais os dos médicos… Veredicto: “disléxico”.
Tratamento: dois anos sob orientação de uma professora “especial” mais três anos a pastar fichas, no fundo da sala, porque a professora regular não era “entendida em dislexias”.
Uma semana de ociosidade após a sua chegada, o professor aproximou-se do moço:
“Então?… Desde que chegaste, ainda não fizeste nada. Por quê?
O aluno não estava diagnosticado de autista, mas não deu troco. O mestre insistiu:
“Posso saber porquê?”
O moço fez ouvidos de mercador.
“Não me ouviste? Posso saber porquê, Tito?”
Aquele mocetão quase a fazer doze anos de idade, enfim, reagiu:
“Eu sou Titinho! Não sou Tito! Você não sabe? E eu sou disléxico.”
(esta estória continua na próxima cartinha)
Por: José Pacheco
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