Avelar, 23 de outubro de 2041
O prometido é devido… concluo a narrativa começada na cartinha de ontem. Estava eu questionando o Tito (ou Titinho, como ele desejava ser chamado):
“Está bem, Tito. Eu sei. Mas, por que nada fizeste, desde que chegaste? Olha para os teus colegas. Pergunta-lhes como se estuda nesta escola. Diz-me por que não te vejo estudar.”
De nada adiantou. Retomou a cantilena:
“Você não sabe?”
“Não, não sei.”
“Na outra escola, eu também não fazia nada.”
“Ai não?”
“Não. Só quando a professora especial lá ia é que eu fazia uns joguinhos.”
“Ai sim?”
“É. Está a ver? Eu não fazia nada. E você não me pode obrigar”
Esgotada a paciência, o professor interrompeu-o:
“Por que que não fazias nada, na outra escola?”
“Você não sabe?”
“Já te disse que não.
É que eu sou disléxico.”
“Tu és disléxico? Eu sou Luís!
Ficou de boca aberta e sem tempo para retorquir. Imaginava o professor Luís o que se estaria a passar naquela cabecinha:
“Então este professor não saberá o que é um disléxico?”
É evidente que o professor sabia. Tanto sabia, que o Titinho – entretanto promovido a Tito pelo grupo – foi fazendo exercícios que o ajudaram a ultrapassar algumas dificuldades. Fez o trabalho que o grupo o ajudou a fazer (a pressão social justa e fraterna resulta sempre), apesar de “trocar umas letrinhas”, como depois comentou, pedindo desculpa pelo que não devia pedir.
Perante a afável autoridade do professor e a persuasão exercida pelos colegas do grupo, restava ao Tito escolher entre duas atitudes: ou estudava, ou estudava. Escolheu… estudar. Naquela escola, não havia autoritarismo, nem permissividade – havia autoridade. E, ali, qualquer outro “disléxico” inteligente optaria por decidir… estudar.
Nunca será demais voltar ao assunto, para lembrar que, apesar da teoria e contra ela, a realidade nos dizia que, desde há séculos, em educação, tudo estava escrito e tudo continuava por concretizar. Nunca será demais falar de inclusão. Nunca será demais lembrar que os projetos humanos careciam de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar, no conviver com a diversidade.
A chamada Educação Inclusiva não surgiu por acaso, nem era missão exclusiva da Escola. era um produto histórico de uma época e de realidades educacionais suas contemporâneas, uma época que requeria que se abandonasse muitos estereótipos e preconceitos, que exigia que se transformasse a “escola estatal” numa “escola pública” – uma escola que a todos acolhesse e a cada qual desse oportunidades de ser e de aprender.
A reelaboração da minha cultura profissional isolou as raízes de uma instituição geradora de vazios. Tive a oportunidade de experienciar, praticar a proposta contida na Declaração de Salamanca. Outros não tiveram essa sorte.
No primeiro dia do Tito naquela escola, uma situação o marcou o e o fez mudar de atitude. À chegada, pendurou a mochila, atirando ao chão mochilas de colegas. O professor chamou-lhe a atenção. O “disléxico” respondeu:
“Não são minhas!”
Pois! Aquelas mochilas não eram dele. Mas, perante o semblante carregado do professor e a interpelação, o Tito apanhou-as do chão e as pendurou nos respectivos cabides.
A mãe do Tito chegou, ao final do dia. Retirou do cabide a mochila do filho, provocando a queda de outra mochila, pendurada num cabide adjacente.
O professor fitou a senhora, insistentemente. Apercebendo-se da recriminação no olhar do professor, a senhora exclamou:
“Não fui eu!”
O professor afastou-se, sem dizer palavra, refletindo sobre as dislexias familiares, que faziam a infelicidade de muitos Titinhos.
Por: José Pacheco
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