Vidual, 25 de outubro de 2041
Entre os idos de setenta e o início dos anos oitenta, participei de encontros de preparação de uma lei de bases. Com ilustres professores universitários muito aprendi. Falavam da necessidade de substituir um sistema de ensino herdado da Ditadura por um sistema que respondesse às necessidades de um regime democrático. No decurso das reuniões, eu parecia servir de conselheiro, só porque, pelos vistos, era o único com prática desse idealizado modo de ensinar e de aprender.
Em 1986, dez anos tinham decorrido sobre a Revolução dos Cravos. A lei de bases aprovada nesse ano abria possibilidades de “mudança”, de “inovação” e de “renovação na continuidade”. Ela foi objeto de várias alterações, quase todas com ênfase na “renovação na continuidade”. Os decretos dela decorrentes não a descaracterizaram, embora viessem a condicionar a “inovação”. A regulamentação quase conseguiu impedir a “mudança”. O sarro do regime salazarista e uma tradição de liderança tóxica quase conseguiram neutralizar a proposta de abertura democrática contida na lei.
Uma regulamentação baseada em critérios de natureza técnico-administrativa (e burocrática) mantinha as escolas sob um controlo autoritário destituído de fundamentação científica e até mesmo contrário à lei. Disso era exemplo o contraste entre o teor da regulamentação e o disposto no artigo 48º (inicialmente, o 45º) da Lei de Bases do Sistema Educativo. Se não, vejamos:
“Artigo 48.º da Lei de Bases do Sistema Educativo – Administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino.
1 – O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes. 2 – Em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino a administração e gestão orientam-se por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo, tendo em atenção as características específicas de cada nível de educação e ensino. 3 – Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa. 4 – A direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, num e noutro caso segundo modalidades a regulamentar para cada nível de ensino. 5 – A participação dos alunos nos órgãos referidos no número anterior circunscreve-se ao ensino secundário. 6 – A direção de todos os estabelecimentos de ensino superior orienta-se pelos princípios de democraticidade e representatividade e de participação comunitária. 7 – Os estabelecimentos de ensino superior gozam de autonomia científica, pedagógica e administrativa. 8 – As universidades gozam ainda de autonomia financeira, sem prejuízo da ação fiscalizadora do Estado. 9 (…).”
Nos idos de vinte, sabíamos que, nas decisões de política educacional, deveriam prevalecer critérios de natureza pedagógica, científica. A lei era explícita, mas era contrariada por uma regulamentação retrógrada, autoritária”. Em próximas cartas (se tiverdes paciência para com este vosso avô) poderei tecer alguns comentários a propósito da “ação fiscalizadora das lideranças toxicas”.
Por: José Pacheco
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