Porto de Mós, 10 de outubro de 2041
Permiti que, mais uma vez, vos fale de melindrosos assuntos. Bem me dizem:
“Quem te avisa teu amigo é. Será conveniente que contornes alguns temas, para não teres amargos de boca. Há assuntos interditos. Ainda hoje, a religião é um deles.”
Ainda hoje, à distância de décadas, não “contorno alguns temas”. Invoco episódios de outros tempos. Como aquele que passo a relatar.
Foi nos idos de noventa. Visitei uma escola, pouco antes do Natal. Professores e alunos preparavam a “Festa de Natal”. Como sempre fazia, envolvi-me ativamente na preparação do festejo. Tomei a meu cargo o ensaio dos cânticos. E por lá fiquei dois dias.
No final do segundo dia e antes de regressar a casa, recebi convite para a reunião de fim de tarde. Conversa amena, chá e bolo, até ao momento em que reagi à intervenção de uma professora, no que considerei reflexo de subdesenvolvimento espiritual. Eis o que a senhora disse:
“Daqui a alguns dias, todo o mundo estará a celebrar o Natal.”
“Olhe que não, minha senhora. E, então, os budistas, por exemplo?” – retorqui.
“Os budistas também estão” – insistiu a professora.
“Não estão, não! Eles não são cristãos. Não celebram o nascimento de Cristo”. “Pode lá ser!” – exclamou, visivelmente irritada.
“Mas é mesmo assim, cara colega! – acrescentei – E há também os hindus, os muçulmanos, os…”
Cortando-me a palavra, a professora contestou:
“Pode lá ser assim como você diz! Os muçulmanos, que são aqueles que andam para aí a matar gente, até pode ser. Mas os outros, não!”
Para não estragar o festivo ambiente, optei por não ripostar. Argumentar para quê? Havia gente assim, católicos que criam que a sua igreja era a única e verdadeira. E que todo o mundo celebrava o Natal. Embora vos possa ser difícil acreditar, até conheci uma professora que estava crente de que o Natal era sempre celebrado ao Domingo. A abertura estreita da burca mental de certos crentes apenas os deixava ver o que lhes era permitido ver, num horizonte encurtado pelo fanatismo.
Comentei o caso com outros professores. Todos se denominavam “católicos não-praticantes”. Todos haviam batizado os filhos e feito a festa da comunhão solene. Todos inscreveram os filhos na disciplina de Religião e Moral Católica, nas escolas públicas que frequentavam. Quis saber o porquê da incoerência de católicos que “não praticavam”. Todos sorriram e só um se pronunciou:
“Quero que o meu filho seja uma criança “católica”. E, se a catequese não faz bem, também não faz mal!”.
Sei, por experiência própria, que poderia provocar muito mal. Mas, no respeito que sempre me mereceu a opinião alheia, quando contrária, nada respondi.
A constituição reproduzia os ventos liberais que marcaram o século XIX. Uma das suas mais emblemáticas mudanças foi a da separação entre Igreja e Estado, amparada na laicidade característica do modelo republicano. Porém, no Brasil, as manifestações culturais e religiosas de matriz africana, por exemplo, foram alvo de intensa perseguição institucional.
Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a Mãe Menininha do Gantois, do terreiro de Salvador, tornou-se símbolo da luta contra a intolerância religiosa e contra a repressão policial, que sofriam os terreiros na década de trinta, enquadrados na Lei de Jogos e Costumes.
No recôncavo baiano, Bethânia, Gil, Caimmy, Caetano e Gal colocaram denúncias em música e texto. Com eles e com uma multidão de fiéis, a Mãe Menininha do Gantois articulou o fim das proibições da realização dos rituais religiosos do Candomblé e da Umbanda. Mas, outras restrições, visíveis ou ocultas, se mantiveram.
Por: José Pacheco