Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXII)

Setúbal, 2 de dezembro de 2041

Nos idos de vinte, o insucesso escolar se naturalizara. A responsabilidade da não-aprendizagem era atribuída ao pai analfabeto, ou às mães, porque não tinham livros em casa. “Explicações” de natureza socioeconômica e cultural eram como uma cortina de fumo, que ocultava a razão maior: o insucesso dos alunos deveria ser atribuído, em primeiro lugar a razões de natureza socioinstitucional. 

O modelo escolar imposto pelo Estado à Escola deteriorara tão profundamente o sistema de relações, que deparei com algo inimaginável. Encontrei uma escola com duas salas de professores Uma delas acolhia professores efetivos (os “concursados” brasileiros); na outra, os professores “agregados”, do “quadro de zona”, os “substitutos”. 

Queridos netos, sei que acreditareis no que escrevo, porque é o vosso avô que o diz. Era inacreditável, inaceitável que discriminações acontecessem e que ministérios autistas legitimassem castas e privilégios. 

Quem convivesse com altos funcionários dos ministérios compreenderia a manutenção de tais absurdos. Ostentavam títulos como “doutor em educação”, mas eu nunca consegui saber de que “educação“ se tratava. Na ponta da língua, dissertavam sobre escolanovismo. Mas, nem sequer numa educação do século XX tinham entrado. Eram exímios no arrazoado socioconstrutivista e, com frases de belo efeito, se diziam apologistas do paradigma da comunicação e de inovadoras transições paradigmáticas, quando as suas práticas radicavam num paradigma nascido no século XVIII. 

Eu queria acreditar que esses funcionários se tivessem atualizado, quando, num evento, tive o desagradável ensejo de partilhar a mesa de debate e os escutar. Um deles, semeou o discurso de citações de citações e quatro vezes repetiu esta frase:

“Recentemente, tive o privilégio de escutar uma palestra do Doutor F…, de Harvard. Uma inovação notável. Nunca tinha escutado nada igual.”

Confesso que foi grande a minha expectativa. A novidade provinha de Harvard e fora proferida por um doutor. Deveria ser coisa importante. 

Ao cabo das quatro menções à “admirável inovação”, o alto funcionário assim rematou o seu discurso:

“O Doutor F. deixou de dar aula. Gravou todas as suas aulas e colocou-as na Internet, para que os alunos pudessem ouvi-las, quando desejassem.”

Hesitei entre o riso e um sobrolho carregado. Talvez o anúncio da “admirável inovação” fosse o fecho de uma anedota, mera blague. Em tempos, um professor de economia, também norte-americano, usara uma contundente blague: dissera que as estatísticas eram como um biquini: o que revelavam era sugestivo, mas o que escondiam era o fundamental. Também pus a hipótese de que não passasse de tentativa de sublinhar algum disparate contido no discurso. Não consegui disfarçar perplexidade, quando acompanhou a última frase do discurso com a exibição de um semblante grave e sério.

Uma salva de palmas premiou a sua intervenção. Quedo e mudo, eu fiquei observando a pedagógica turba ovacionando um doutor funcionário em êxtase. 

Talvez a ingénua turba e a notável criatura nunca tivessem chegado a tomar consciência do ridículo das suas intervenções e ovações. Isso bastou para que fossem merecedores da minha compaixão. 

Numa das minhas “palestras”, uma alta funcionária disse ter feito doutorado em inovação. Perguntei-lhe onde o tinha feito. Respondeu que o fizera numa conhecida universidade. Concluí o breve diálogo, questionando a sua afirmação:

“Minha senhora, como poderá ter feito um doutoramento em inovação numa universidade que não é inovadora?” 

 

Por: José Pacheco

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