Santa Luzia, 14 de dezembro de 2041
A minha amiga Tina era implacável na crítica à desumanização da escola. No tempo da máscara obrigatória, tinha coragem suficiente para denunciar a má utilização, que, então, se fazia das tecnologias digitais.
“Você ainda acredita que a inovação na educação virá da tecnologia? Gamificação para ajudar na decoreba de conteúdos fragmentados é inovação? Lousa digital para o professor, o detentor do saber, expor sua sapiência é inovação? Aplicativo de apostila digitalizada é inovação? Plataforma digital conteudista é inovação? Tablet para o aluno (subserviente) seguir o roteiro elaborado pelo professor (protagonista) é inovação?
Mesmo depois de importantes avanços tecnológicos na educação, continuamos com a mesma base pedagógica, pautada no Paradigma do Instrucionismo, com processos sequenciados por apostilas, que padronizam o que as crianças aprendem, o método e o ritmo que todos devem seguir, com volumes enormes de conteúdos fragmentados, para serem decorados e reproduzidos em provas que testam a memória do estudante.
O que vemos é a digitalização das velhas práticas pedagógicas. Uma aula com quadro verde e giz foi transportada para uma lousa digital. A apostila foi digitalizada e animada, mas continua sendo um instrumento padronizador. Uma sequência de exercícios foi gamificada, mas mantém a função de estimular a decoreba de conteúdos.
A maior revolução na educação não será tecnológica, mas pedagógica. Precisamos libertar a educação das amarras do Instrucionismo e atuar no Paradigma da Aprendizagem e da Comunicação. A tecnologia precisa ser uma aliada desta revolução pedagógica e parar de ser uma maquiadora das velhas práticas.
Como disse meu amigo Ricardo, “não podemos cair na digitalização do tradicional”.
Na outra margem do Atlântico, o Zé Morgado comentava o difícil processo de “transição digital”. Demonstrava surpresa perante a relutância de muitas famílias relativamente à entrada nos seus lares das famigeradas “aulas online”.
“Em diferentes agrupamentos e escolas, muitas famílias de alunos identificados como necessitando de equipamento para acesso ao ensino presencial e integrando, naturalmente, os escalões mais carenciados no âmbito da Ação Social Escolar, não procederam ao seu levantamento, nas escolas.
Estes equipamentos foram colocados à disposição das escolas pelas autarquias e por entidades particulares. Numa situação completamente atípica, que não terá um fim próximo, e numa perspectiva de proteger a equidade claramente ameaçada, a situação deveria ser repensada, de forma a que as famílias pudessem ultrapassar eventuais razões para o seu não levantamento.
Temos pela frente uma gigantesca tarefa de recuperação de aprendizagens não realizadas, de recuperação de alunos que perderam na distância a que ficaram da escola, de recuperação do impacto negativo e significativo que estes meses de confinamento sem escola terão causado.
O deslumbramento com o novo mantra, transição digital, ainda terá que gerir situações como estas.”
O amigo Zé atribuía a “recusa de muitas famílias de usar os equipamentos” ao fato de elas virem a ser obrigadas à sua devolução, após a conclusão do ano letivo, e de serem responsabilizadas pelo estado dos equipamentos.
Hoje, sabemos que o Zé estava equivocado. No tempo em que se andava mascarado, já havia robôs exportando conteúdos a granel. E a rejeição talvez constituísse um ato de amor. Intuitivamente, talvez as famílias estivessem a proteger os seus filhos de uma “digitalização do tradicional”.
Por: José Pacheco
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