Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVI)

Sagres, 27 de dezembro de 2041

Ainda no rescaldo das natalinas festas e rebuscando velhos relicários, encontrei um internético apelo, que junto a esta cartinha:

“Preciso de alguma ideia para trabalhar com aula a distância sobre desfralde para Maternal1”.

“Por amor de Deus!” – exclamou a Cecília. E eu vos poupo ao que “exclamei”, face a essa e outra “relíquia”, que encontrei na mesma caixa de velharias:

“Planos de aula 0 a 6 anos com materiais e atividades de apoio, todos com os códigos da BNCC.

Bônus: alfabeto completo e números para pôr na sala de aula”.

“Planos de aula”! Isso mesmo! A escolarização começava entre zero e seis anos. O amigo Tião dizia que a escola era como “o serviço militar obrigatório aos seis anos”. Neste caso, a militarização começava, tão logo o feto lograsse sair do ventre materno.

Vos garanto que estou a dizer a verdade. Se quiserdes, vos mostrarei as relíquias. Essa e outras demonstrações de pedagógicas obscenidades eram provas de que a cultura pessoal e profissional dos educadores andava pelas ruas da amargura. Seria necessário intervir, drástica e urgentemente no campo da formação, para bem cuidar da pessoa do professor e socorrer aqueles que se confrontavam com situações como a que passo a transcrever:

“Pega esse e esse, e passa para ela!

Eu era a professora nova. Eu ia com a ideia de ser uma boa professora. Davam-me uma turma de 30 alunos.

As mães diziam que eu passava pouco dever de casa. E eu deixava de lado algumas crianças, porque sentia que algumas crianças não davam trabalho. Mas também não aprendiam. Eu tentava ensinar trinta, mas…

Nós fazíamos reagrupamentos, mas não resultava. Dividíamos por níveis, que era uma metodologia que a secretaria adotou. Mas os maus alunos não aprendiam melhor. Estavam desmotivados.

Mas… como é que se muda? Nós sabemos que temos de mudar, mas não sabemos como. A gente está condicionada. Está tudo engessado. Eu não sei por que é que o menino tem de estar sempre sentado.

O grupo da escola mudou. Foram embora as melhores professoras. Temos professoras temporárias. Há professores que não têm condições e não conseguem ensinar todos os alunos.

E por que é que doutor, ou mestre, ganha mais do que uma professorinha? Salário ligado a um título, ou salário digno?”

Boa pergunta! A “professorinha punha o dedo na ferida”. A mudança educacional começaria numa profunda e gradual reelaboração da cultura pessoal e profissional. Passaria pela oportunidade de rever valores e princípios, e de assentar o labor do professor na lei e na ciência. Também passaria pela elevação do seu estatuto social – salário igual para trabalho igual.

Por que razão se aumentava o salário em função do tempo de serviço, se não estava provado que o acúmulo de anos de serviço significasse melhoria do desempenho? No degradante processo de “funcionarização”, o professor era recompensado pela lealdade do servidor público ao estado: quanto mais tempo me serves, mais dinheiro te dou.

Num país dito civilizado, seria um escândalo o fato de o piso salarial de um professor ser sete vezes inferior ao de um médico. Não existiria justificação para o fato de um gestor educacional receber um salário superior ao de um professor. Nem se aceitaria que um professor do “ensino superior” recebesse uma boa aposentadoria, quando um professor do “inferior” auferia uma aposentação modesta.

Nesse tempo, ninguém soube dar resposta à “professorinha”. Se a obtenção de um título acadêmico não aumentava a qualidade da performance, por que razão os titulares de mestrado, ou doutoramento, “ganhavam mais do que uma professorinha”?

Por: José Pacheco

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