Vila Nova de Cerveira, 11 de janeiro de 2042
O Bino foi considerado “aluno incapaz de se adaptar à escola”. E, quando ingressou na Ponte, o relatório que o acompanhava avisava:
“É um aluno que apresenta dificuldades de controlo dos impulsos agressivos e manifesta o maior desinteresse pelas aprendizagens escolares, para além de uma já evidente tendência para a aproximação ao álcool”.
Pudera! O Bino fizera o tirocínio com a avó. E afiançava-me, muito tempo depois, que “aquilo nem era vinho, era uma zurrapa, porque a avó Zefa já tinha uma grande conta de assentar na mercearia, e na tasca já nem a podiam ver, e muito menos lho vendiam”.
Relutante às “aprendizagens escolares”, o Bino aprendeu a vida na busca de mantimento, que “a reforma da avó não chegava sequer para a pinga”. Especializara-se em assaltos a hortas e pomares. Aos quatro anos, era hábil na fisgada certeira e na ferradela pronta no braço do hortelão que o surpreendesse em flagrante.
O Bino não conheceu pai nem mãe. Consumada a parição, a progenitora abalou para França, no rasto do presumível pai. Nunca mais deu notícia. Uma avó o acolheu num tugúrio de chão de terra batida.
O Bino cresceu entre maus-tratos e fomes de dias. Ao fim da tarde, engolia uma malga de “sopas de cavalo cansado”, enquanto aguardava a chegada da avó. Vinha, invariavelmente, embriagada e de terço na mão. Avistando-a, o Bino descalçava as botas de surrobeco herdadas do falecido avô e atirava-se para debaixo das mantas.
Ao cabo do primeiro mistério, a avó já cabeceava, arrastava a voz na ave-maria e acabava por sucumbir aos alcoólicos eflúvios, adormecendo encostada ao seu ombro. O Bino deixava-se anestesiar pela respiração da velha e afundava-se num suave torpor, até de madrugada.
A pequena leira em redor do casebre era pedregosa. Quase nem ervas cresciam, muito menos coisa semeada. De modo que o sustento e o “aquecimento central” do Bino e da avó Zefa eram as ovelhas do pequeno rebanho que com eles coabitava.
Sabemos que o brincar e o jogar são característicos de um tempo de expansão do conhecimento de si mesmo, do mundo e dos sistemas de comunicação. E que a infância acaba quando alguém reconhece que a sua vida deixou de ser um jogo maravilhoso, ou quando alguém proíbe outro alguém de brincar. O Bino soube-o quando a avó Zefa o fez levantar da cama, numa frígida madrugada, aos quatro anos mal feitos.
“Hoje, és tu quem leva as mequinhas ao monte, que eu não me tenho de pé. Deixa-te levar pelo Malhado, que lá chegas”.
E chegou. Pelo meio da tarde, o cão guiou o pequeno rebanho no regresso a casa, com o Bino a reboque, esfomeado e com os pés descalços fustigados pelos cardos. Nunca mais ficaria no aconchego das mantas para além do nascer do sol, e o Malhado viria a ser seu mestre e única companhia até aos sete anos de idade.
Um dia, “uma senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada” (palavras que o Bino ditou) espreitou para dentro daquele tugúrio partilhado por animais e gente, e perguntou se a avó se chamava Josefa da Conceição. Disse vir da parte das autoridades e que as autoridades tinham mandado uma carta à avó do neto que a escola reclamava. A avó retorquiu que não senhor, que não tinha recebido carta coisa nenhuma e que, “ainda que tal cousa lhe chegasse, nenhuma serventia teria por das letras nada saber”.
De nada valeu a ladainha à avó que das letras nada sabia. O único proveito que a avó Zefa obteve da “senhora bem-vestida, bem cheirosa e aprumada” foi uma magra pensão de sobrevivência, tão magra que mal dava para encomendar meia dúzia de garrafões.
Amanhã, vos contarei o restante da estória do Bino Bouças e de outros Binos.
Por: José Pacheco
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