Gião, 18 de janeiro de 2042
Mal acabara a obrigatória quarentena, fui passear pelas ruas de Tavira, máscara prudentemente colocada, mãos húmidas de álcool em gel. Cansado de tanto andar, sentei-me em frente ao coreto do jardim, junto ao Rio Gilão. Senti-me invadido por uma estranha sensação. Tomava consciência de que havia estado sentado naquele banco de jardim… há cinquenta anos.
Meio século antes, ali me sentara, antes de entrar num quartel, onde preparavam jovens para combater numa (como todas) estúpida guerra, que já me levara três amigos. No janeiro de setenta e dois, o vosso avô fora mandado ser atirador de infantaria, tal como o Valdemar, o João e o Eduardo, mortos em combate, em Moçambique e na Guiné. Para o vosso avô pacifista e estrábico, ser enviado para a guerra colonial soava como uma sentença de morte. Talvez um dia vos conte como dela escapei.
Na antiga biblioteca da casa de Vila das Aves, encontrei fotografias desse tempo, juntamente com o livrinho das cartinhas enviadas à Alice.
Enviei-as em 2001, nos seus primeiros dias de vida. A última tem a data de 15 de setembro de 2007, o dia previsto da sua entrada na escola e de aniversário do saudoso amigo Rubem. Me recordo de, no janeiro de 2022, ter recuperado algumas das metáforas contidas nesse livro. Exatamente, 16 anos e 4 meses depois, publiquei-as no Instagram (certamente, ainda vos lembrais dessa velha rede social):
“Nesse tempo, a par dos gestos claros das gaivotas e de outras aves de branca magia, havia o contraponto da magia negra de pássaros doentes de inveja, que negavam a realidade e tentavam abolir a esperança. Hoje não te falarei desses tenebrosos pássaros. Evocarei um Pássaro Encantado, ser raro, sensível, que, no tempo em que tu nasceste, contava a história de um “pássaro branco com cauda de plumas fofas como algodão”, que chorava e tinha saudades, como os humanos nem sequer conseguiriam imaginar.
Esse Pássaro Encantado incompreendido pelos pássaros cativos era a esperança dos pássaros fraternos e sonhadores. Comovia-se perante o canto inventado por um outro pássaro mágico de nome Bach, ou quando escutava melodias inventadas por Ravel, um pássaro que deixou muitas melodias por inventar.
O Pássaro Encantado abalou para o outro lado do mar, ao encontro da escola “com que sempre sonhara”. Depois, apercebeu-se de que o sonho não habitava apenas aquela escola das aves, que o sonho morava em muitas, muitas escolas e gaivotas. Preocupava-se com o futuro dos jovens pássaros, mas não se conseguia abstrair da necessidade da felicidade do imediato.
Seguindo o exemplo do Pássaro Encantado, muitas gaivotas conscientes de que o tempo foge enquanto a eternidade avança, ousavam reinventar a Escola. E, porque sabiam que, se a Escola fora invenção do Diabo, o Diabo fora uma invenção dos homens, as gaivotas já reivindicavam a felicidade do aqui e agora. Ainda que a escola o tivesse esquecido, ao longo das trevas em que esteve imersa, o fim último da Escola é mesmo o de ser feliz.
No já distante ano de 2003, na estante do quarto que foi o lugar onde o teu pai cresceu e se transformou no maravilhoso ser que te gerou, coloquei os livros que o Pássaro Encantado ia escrevendo (livros eram objectos através dos quais os humanos passavam a sua herança cultural, de geração em geração). Ali permanecem, à espera de que a escola que, em breve, te irá acolher, te conceda o privilégio da paixão de os procurar, de os abrir, de os saborear. Sei que te deixarás penetrar pela benfazeja mensagem.”
Creio que compreendereis por que razão, em 2042, ainda é necessário transcrever antigas metáforas.
Por: José Pacheco
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