Dornelas do Zêzere, 25 de março de 2042
No março de há vinte anos, milhões de mulheres e crianças ucranianas buscavam refúgio na Europa assolada por uma guerra muito antes anunciada. Ao final de um mês de destruição e morte, Zelensky dirigia apelos a outras mães: às mães russas, acreditando que elas também amassem os seus filhos.
Pampilhosa da Serra foi lugar de amparo de cinco mães ucranianas e dos seus cinco filhos. Durante o jantar de acolhimento, num misto de português e ucraniano, a Tânia evocou familiares. Comovida, numa fala feita de dor e gratidão, agradeceu a hospitalidade dos pampilhosenses.
Na obra “O Último Voo do Flamingo”, Mia Couto ajudava-nos a compreender a trágica situação vivida na Ucrânia de 2022:
“A Guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio de gente miúda”.
Era bem verdade! Outros conflitos sangrentos ocorriam. Na Etiópia, novecentas mil pessoas morriam de fome, por efeito de um dos conflitos mais brutais entre grupos étnicos, com relatos de assassinato de civis e estupros em massa, segundo denunciava a Anistia Internacional. No Iêmen, a guerra causava o pior desastre humanitário de que havia memória. Mianmar vivia em permanente guerra civil. Milícias locais atacavam comboios militares e assassinavam autoridades. O Haiti vivia uma nova espiral de violência. Na Síria, protestos transformaram-se em guerra civil de grande escala, causa de 380 mil mortos e cidades arrasadas. Em Moçambique, militantes islâmicos sequestravam e decapitavam um sem-número de pessoas. No Afeganistão, a guerra não cessara.
Ao falar da “Alegria de Ensinar” e comentando a reprodução escolar como uma das raízes da violência e das guerras, o amigo Rubem nos deixou reflexões essenciais:
“Acho que é uma repetição do que acontece nas escolas. As crianças são ensinadas tão bem, que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se ecos das receitas ensinadas e aprendidas (…) basta repetir aquilo que a tradição sedimentou e que a escola ensinou. O saber sedimentado nos poupa dos riscos da aventura de pensar.”
De uma das últimas canções compostas por Leonard Cohen extraí alguns versos:
“Os pássaros cantam no romper do dia: comece de novo / Eu os escuto dizer: não se apoie naquilo que passou, ou naquilo que está para vir / Ah, as guerras! Elas serão lutadas de novo / A pomba sagrada será apanhada novamente, comprada e vendida e comprada de novo / Todo coração virá para amar como um refugiado / Toque os sinos que ainda pode tocar / Há uma falha em tudo / É assim que a luz entra”.
Havia sempre “uma falha em tudo”. Era por aí que “a luz entrava”. Disso me dera conta, anos antes, quando tomei consciência do quanto a educação influía no destino dos homens.
Nos anos setenta, fui em demanda da “falha” por onde a “luz” pudesse entrar. Acreditava que escola que reproduzia um modelo social sustentado na violência simbólica poderia ser a escola que afirmasse a possibilidade da paz.
Naquele tempo, havia muitos professores que arriscavam buscar a “falha”, mas raramente se fazia luz.
“Estais a meter-vos com gente de muito poder! Parece que quereis comprar uma guerra”.
Nos idos de setenta, aconselhavam-nos a “desistir de quixotescas intenções”. Respondíamos, dizendo não querer “comprar uma guerra”. Ela já ali estava, antes de nós.
Na Ponte, acreditávamos que se poderia sair do círculo vicioso da reprodução escolar e social, por via do exercício de uma solidariedade ativa”. E, meio século após a Ponte, em terras beirãs, assente na solidariedade dos povos, se inaugurava uma era de Paz.
Por: José Pacheco
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