Vila Nova de Foz Coa, 24 de março de 2042
Num final da tarde de um dia de março de há vinte anos, encontrei-me com educadores da Beira Interior, gente que decidira partir do que era para ser mais e servir bem melhor. Foi o tempo de encontrar nos “cafundós” de lusas terras o material humano necessário para a redenção da escola. E uma das manhãs desse tempo foi uma das primeiras manhãs do mundo. Lá fora, frio e um céu pedrento ameaçando chover. Na Internet, uma surpresa: ainda havia Vida em Vila Nova de Foz Coa.
Nesse mesmo dia, na cidade mártir de Mariupol, a barbárie se expandia. O exército russo bombardeava uma escola onde mulheres, crianças e idosos precariamente se protegiam. Nessa semana, mais de cinco mil crianças ucranianas já tinham sido autorizadas a ficar em Portugal. Na Pampilhosa, assisti ao amoroso acolhimento de cinco mães ucranianas e seus filhos.
Se quiserdes, isso vos contarei em próximas cartinhas. Nesta, vos falo da minha primeira passagem por Figueira de Castelo Rodrigo.
O Maia se apaixonara por uma figueirense e por lá ficara. Décadas de dedicação ao ensino de Filosofia culminaram na presidência do Agrupamento de Escolas. Marcamos encontro no restaurante do Jorge. Mal a conversa começou, o Maia traçou na toalha da mesa uma linha imaginária norte- sul:
“A maior parte do investimento vai para o litoral. Para as regiões do interior, apenas ficam migalhas. Os jovens vão embora. Nada têm que lhes interesse, por aqui”.
No interior beirão, havia aldeias onde crianças não havia. E, na cidade grande, uma mãe se queixava:
“Tenho dois filhos. Todos os dias, levo o João à escola, no extremo da cidade. Depois, levo o meu outro filho à escola que fica no extremo oposto. Fica-me muito caro ter de fazer estas viagens. E fique sabendo que há uma escola a cinco minutos de minha casa”.
Por via da segmentação em anos e ciclos de escolaridade, fortunas eram gastas em “transporte escolar”. Muitos euros eram desperdiçados para levar os filhos à escola, porque se supunha que as escolas eram edifícios. Milhões de euros foram gastos na construção de “centros educativos”, que o tempo transformou em “elefantes brancos”.
Longe vai o tempo do desperdício, mas senti necessidade de refazer a memória do “legalismo” daqueles professores que afirmavam que as leis vigentes não permitiam mudar as escolas.
Um estudo da Lorraine Moureau nos dizia que um terço dos professores era muito bom, um terço poderia ficar bom, um terço deveria mudar de profissão. Chamemos aos primeiros aquilo que eles eram: professores. Designemos os segundos por “quase-professores”. E… os “outros”.
Um professor contou-me o sucedido numa reunião de Conselho Pedagógico. Apresentou um projeto de acolhimento de crianças ucranianas. Um terço apoiou. Outro terço se quedou num silêncio expectante. Pela voz de uma professora de português (que dizia não gostar de ler) se pronunciou o terço restante (os “outros”):
“Isso até pode resultar, mas a lei não permite. Poderá até se estender ao resto da escola e termos de fazer mais papelada. Já chega o que temos que fazer! E, agora, ainda mais com os ucranianos… Eu acho que o que é preciso é dar um tiro na cabeça do Putin.”
A ingenuidade pedagógica e a ausência de senso crítico, levara a professora a “achar” que o Putin era o único responsável pelo cortejo de horrores, que desfilava pelo écran da televisão e pela tela dos computadores. Não tinha noção da sua quota parte de responsabilidade, como reprodutora de um modelo educacional iníquo, gerador de egoísmo, xenofobia, homofobia, miséria, fome, guerras e outras patologias e chagas sociais.
Por: José Pacheco
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