Caldas da Rainha, 21 de abril de 2042
No abril de há vinte anos, voltei ao lugar onde, inspirada na obra do pregador Frei Contreiras, a Rainha D. Leonor fundou um “Hospital Termal”, com a finalidade de pôr em prática as obras de Misericórdia para com os mais carenciados. Em 1512, por “necessidade de acudir aos pobres e necessitados”, a Rainha, ordenou a redação do “compromisso do Hospital das Caldas”, que seria o modelo dos compromissos das futuras Misericórdias. E elas se espalharam pelo mundo.
Nesse lugar, onde, por várias vezes, o amigo João me levara, “acudimos aos necessitados da educação”. O João organizara um encontro com professores e membros da comunidade caldense. Juntos, criamos um embrião de núcleo de projeto, redefinindo o papel do professor no contexto de protótipos de comunidade de aprendizagem.
O “papel do professor” foi objeto de comentário do amigo Nóvoa, no seu comentário de uma obra de António Sérgio:
“Sérgio advoga que se conceda um foral às nossas escolas, «de modo que a turbamalta estudantil, em vez de um rebanho estúrdio mal pastoreado pelo mestre, reitor, diretor ou vigilante, formasse um verdadeiro município, sob a assistência, o conselho e a cooperação discreta dos professores».
Sérgio critica a albarda da resignação fomentada pela escola e afirma a necessidade de uma formação cívica prática: «a educação cívica meramente teórica parece um ensino de esgrima em que se não empunhasse uma arma, ou uma aprendizagem de piano em que os dedos se não mexessem: é um absurdo».
Ao professor ficaria, assim, reservado um papel discreto, de alguém que incita os alunos a encarar a res publica com toda a gravidade: para isto é necessário – conclui – que a autoridade dos educandos se venha adicionar, porém não substituir, à de quem ensina”.
Coincidindo com o pressuposto cultivado na Ponte de que não se educa para a cidadania, mas na cidadania, no exercício de uma liberdade responsável, o Mestre Nóvoa acrescenta:
“O município escolar é assumido como o laboratório da aula de instrução cívica. O princípio dos municípios escolares está presente em toda a Educação Cívica. Mas é neste terceiro capítulo que António Sérgio elabora a sua definição, insistindo nas noções de governo democrático, na feitura de leis pela cooperação entre os cidadãos, na responsabilidade de cada um pelos problemas da cidade-escola: «o professor ensinará pois os estudantes a governarem-se a si mesmos, criando leis justas e sensatas e sobretudo executando-as e fazendo-as executar”.
É absurdo pensar que, neste sistema, o papel do professor se esbate, arrastando a vida escolar para um falso igualitarismo. As diferenças de estatuto estão bem-marcadas no ideário sergiano. Mas isso não o impede de sustentar, uma e outra vez, a necessidade de instaurar uma vida democrática nas escolas.
E, voltando ao conceito de Self-government, Nóvoa conclui:
“Depois de Michel Foucault, é difícil falar do self-government com a mesma inocência do princípio do século XX. Um livro recente, da autoria de Jorge Ramos do Ó, analisa criticamente a ideia de governo de si mesmo, expondo a força de uma autoridade interior (invisível) quantas vezes bem mais totalitária do que a autoridade exterior (visível). A pedagogia não aspira apenas a formar um ser racional, mas também um ser razoável, responsável e sensível.”
Decorridas quatro décadas sobre essa publicação do Mestre Nóvoa, a sua releitura me permitiu entender bem mais objetivamente o que, entretanto, aconteceu, na educação que se fazia no Brasil e em Portugal.
Vos contarei, em pormenor, em próximas cartinhas.
Por: José Pacheco
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