Sobral de Monte Agraço, 26 de abril de 2042
A estória conta-se em poucas palavras. Tudo começou com a morte da mãe do João e com o namorico do Artur.
O João era dotado de uma inteligência excepcional. Apesar da sua origem humilde, “estava fadado para altos voos” (no dizer da Professora Lurdes). Até ao dia em que a sua mãe faleceu e, sendo o irmão mais velho de seis irmãos, foi trabalhar na construção civil, para os sustentar. Ofereci-me para o ajudar nos estudos, mas o cansaço de um trabalho insano o fez desistir, nada pude fazer por ele.
O Artur, jovem de inteligência mediana, desistira de estudar, até ao dia em que conheceu a Ilidia. Ela, filha de pai milionário; ele, morador da miserável Ilha dos Tigres. Pediu-me ajuda, para tentar entrar na Universidade, para chegar a ser engenheiro e poder pedir a Ilidia em casamento. Fui um improvisado “explicador” do Artur. Passou no exame de acesso à Universidade, se fez engenheiro, ficou rico e conseguiu do pai da Ilidia a autorização para a desposar.
Nesses destinos opostos, me descobri educador vocacionado para extinguir ou, pelo menos, desgastar uma manifesta desigualdade social, o que não era empresa fácil, como iremos ver.
Decorria o ano de 1976, quando uma escola ousou desobedecer às ordens expressas da Inspeção Escolar e escapar às armadilhas da sorte, logrando estabelecer práticas do paradigma da aprendizagem. Nessa escolinha o aluno assumiu autonomia, passou de objeto a sujeito de aprendizagem, ou como se dizia nessa altura, passou a ser “protagonista”.
Não se apagou a figura do professor, apenas se modificou o seu papel. À semelhança dos seus alunos, o professor se assumiu como sujeito autônomo, na dignidade de trabalhador da educação, ao serviço de um projeto que uma comunidade adotara.
Trinta anos após esses eventos, a Ponte era bem conhecida lá fora, enquanto era ignorada na sua terra. Só porque os seus professores tomaram a decisão ética de inovar, a escola sofria violências sem conta. Deixei-a com um contrato de autonomia e me ausentei do país que a maltratava e tentava destruir.
Voltei, vinte anos depois, e apercebi-me de que no país de brandos costumes pouco ou nada havia mudado. Uma cortina de silêncio caíra sobre a escola que pela primeira vez na história da educação, passara do instrucionismo à aprendizagem. Embora os seus educadores fizessem cursos na Internet e fossem convidados para palestras, raras escolas seguiam o seu exemplo.
O sistema estava tão instrucionista como em 2003. Durante esses vinte anos, tinham-se sucedido regulamentações da lei, que dissiparam o que de autonomia havia no contrato firmado entre a Ponte e o ministério, em 2004.
Quisera saber se restava algo da Ponte que deixara nos primeiros anos deste século. Visitei-a, soube dela pelos olhares atentos de doutorandos, conversei com ex-alunos. O essencial fora preservado. Sobretudo no domínio de uma educação cidadã. aquela que o Nóvoa mencionara num comentário a um ensaio de António Sérgio:
“A escola de António Sérgio é, acima de tudo, caracterizada pelo valor pedagógico da autonomia e, por isso, sugere: “não vos canseis com os problemas de compêndios e programas: cumpre revolucionar os próprios métodos, o ambiente social em que a criança vive”.
Em 2022, o Programa de Governo para a Educação continha objetivos que a Ponte concretizara em… 1976. Talvez por isso, Nóvoa concluísse a sua análise com estas palavras:
“Self-government, foral, município escolar”, palavras que me permitem, à luz daquilo que conheço da Escola da Ponte, sugerir uma releitura das propostas de António Sérgio”.
Por: José Pacheco
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