Leiria, 7 de maio de 2042
É de George Orwell a seguinte frase:
“Toda propaganda de guerra, toda a gritaria, as mentiras e o ódio, vêm invariavelmente das pessoas que não estão lutando”.
Políticos procuravam explicação para uma guerra na Europa, nos idos de vinte. Comentadores teorizavam o conflito. Mas, no campo de batalha, na prática, quem perecia eram seres humanos de longe comandados.
No campo da educação, talvez se pudesse estabelecer um paralelo. De igual modo, se poderia dizer que a teoria provinha de pessoas que não estavam fazendo o que teorizavam.
Decorria a guerra na Ucrânia, quando voltei a Portugal, correspondendo a convites de amigos. Encontrei uma sociedade exausta de reformismos. Deparei com vidas plastificadas e apressadas, com escolas possuídas por uma angústia pandémica. Reencontrei professores doentes da mesma solidão de antanho. No chão da escola, convivi com crianças sujeitas a um bombardeamento sensorial e perceptivo do cérebro.
Num congresso, reencontrei o amigo Carlos, que repetia o apelo feito há trinta, quarenta anos:
“Não podemos continuar com uma escola instrucionista, que digitaliza a relação humana. Acabemos com a sala de aula e com o intervalo”.
Em outros eventos, retomei contato com educadores, que já não via, desde que partira do meu país para um voluntário exílio. Retomei conversas adiadas, com eles preparei projetos de mudança. Mas, também sofri a decepção de reencontrar alguns desses amigos convertidos em áulicos.
Se lhes propunha o diálogo, reagiam como reagiu a diretora da Escola da Ponte, em 1976:
“Está proibido de fazer o que disse que quer fazer. Aqui, quem manda sou eu e o Senhor Delegado Escolar!”
No mês de maio de há vinte anos, fui até Leiria. Encontrei educadores como a Hélia, que me ajudavam a manter a esperança que nunca morre. Mais uma vez, me mostrava disponível para partilhar práxis aprendidas em terra alheia.
Esperava-me um debate sobre “novas construções sociais de aprendizagem”. Nele participaria um amigo de longa data. Ele fora convidado, aceitara o convite e confirmara a presença. Mas, quando tomou conhecimento de que eu faria parte da mesa de debate, recusou participar, invocando “razões de ordem pessoal”.
Não havia “razões de ordem pessoal”. Havia gente que estudava, estudava e ia aumentando a arrogância intelectual. Havia quem detestasse quem havia posto em prática o que apenas se teorizava. A erudição dessa gente era a negação da sua prática.
Naquele tempo, eu já não me decepcionava, apenas sentia compaixão e receio de que o teoricismo continuasse a comprometer a mudança e a inovação.
Quando eu propunha mudança, essa gente contribuía para proibir a mudança. Quando propunha reflexão, interpretavam-na como imposição. Quando me propunha dialogar, respondiam com o silencia e o ostracismo. Quando disponibilizava ajuda, recusavam-na. Quando pedia que me dessem razões da recusa, ignoravam os meus pedidos. Quando ajudava educadores a inovar, impediam que os educadores inovassem.
Recordo-me de, já nos idos de setenta, me ter cansado de escutar palestras proferidas por gente que lia o que um retroprojetor de acetatos debitava. Nos idos de vinte, já não conseguia suportar palestras de power point em que se falava de inovação e “boas práticas”.
A que se referiam? Onde estariam as “boas práticas”? De que andávamos a falar, desde há mais de quatro décadas?
Quando visitei Portugal, muitas aprendizagens fiz. Não na observação de práticas, mas na leitura de teses produzidas por inovadores não-praticantes. Também compreendi por que havia guerra na Ucrânia.
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