Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXXII)

São Paulo, 10 de maio de 2042

Queridos netos, certamente, estareis recordados do que vos contei numa cartinha enviada há cerca de uma semana. Era o início de uma estória, na qual dedicados discípulos deixaram que a cabaça do mestre se perdesse.

“E, depois?” – perguntastes.

Pois bem! Deixei que uma semana passasse, para que tivésseis ensejo de pensar o “depois”. Vede se a vossa hipótese coincide com o vosso desfecho da estória.

“Quando o mestre acordou, perguntou se estava tudo bem.

“Está tudo bem, mestre — responderam. — Acontece que a tua cabaça caiu.

E vocês não a apanharam? Onde vou agora pôr a minha água? 

Os discípulos responderam:

Mestre, disseste-nos para vermos bem o que caía da carroça e assim fizemos.

Sois mesmo néscios! — replicou o mestre. Não era isso que eu queria dizer, mas o que está feito está feito. A partir de agora, se alguma coisa cair no caminho, apanham-na e põe-na na carroça, perceberam?

Sim, mestre — responderam em uníssono.

O mestre adormeceu, de novo. A carroça balançava e os alunos sentiam dificuldade em manter os olhos abertos. Subitamente, a carroça parou, devido às necessidades dos bois. Quando estes terminaram, a marcha foi retomada. Dois discípulos saltaram para a estrada e apanharam os dejetos para os meter na carroça. Um dejeto caiu sobre a cabeça do mestre, que acordou.

Que estais a fazer? Que porcaria é esta?

Mestre, disseste-nos para apanharmos tudo o que caísse no chão.

O mestre ficou silencioso, por instantes. Decidiu fazer uma lista minuciosa do conteúdo da carroça e deu-a aos discípulos.

Se alguma destas coisas cair do carro, recolhei-a. Mas só o que está escrito na lista.

Sim, mestre — concordaram os alunos.

O mestre voltou a adormecer. A carroça subia uma encosta íngreme, ladeada por um riacho. Os discípulos iam ensonados. De repente, ouviram um grande ruído: o mestre tinha caído à água.

Socorro! Socorro! — gritava.

Os discípulos pegaram na lista e percorreram-na escrupulosamente. O nome do mestre não constava dela. Decidiram retomar o caminho. Ao vê-los afastarem-se, o mestre gritou:

Aonde ides? Parai imediatamente!

Os alunos, obedientes, pararam e foram ao encontro do mestre.

Quereis que eu morra? Caio da carroça, quase me afogo e nenhum me vem socorrer?

Mas, mestre — desculparam-se — não tínheis incluído o vosso nome na lista e nós só devíamos apanhar o que lá estivesse escrito. Quisemos obedecer-vos.

Claro que me obedeceis! — gritou o mestre, exasperado. — Mas o fazeis sem refletir! Pensai antes de agir, em vez de seguirdes cegamente o que eu vos digo para fazer!”

Sei que não agis como esses discípulos. E que estareis a pensar: por que razão o nosso avô nos conta esta estória? Porque, há vinte anos, vigorava o paradigma do comando e controlo. O Donald dissera serem os professores profissionais críticos, reflexivos, mas eram reproduzidas práticas carentes do ato reflexivo e pródigas em atos reflexos. 

Eram trágicas as consequências. Por essa altura, um milhão e seiscentos mil estudantes estavam sob a influência de duas ou mais drogas psiquiátricas. Contava-se por setenta a quantidade de jovens que se mutilavam e por 120 mil os que tentavam suicídio (só nos Estados Unidos). 

O Donald também afirmava que era impossível aprender sem ficar confuso. Neste mesmo dia de há vinte anos, eu completava o meu septuagésimo primeiro ano de vida e começava a suspeitar de que seria eu quem estava confuso e sem razão. Começava a pensar que, por desejar refletir e aprender até ao fim da vida, a minha perplexidade perante a trágica situação talvez não passasse de um primeiro sinal de senilidade. Talvez…

 

Por: José Pacheco

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