Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMIV)

Cova da Iria, 12 de junho de 2042

Serenamente, como convém quando não se vive a pressa de “verdes anos”, nem as “certezas da idade madura”, cá vou rabiscando memórias dos idos de vinte. Os velhos detêm uma prodigiosa memória de longo prazo, enquanto se irritam com o esquecimento do que iriam fazer quando disseram “vou ali e venho já”. Então, antes que a de longo prazo possa esvair-se, cumpro este matinal ritual, crente de que dele possais tirar algum proveito.

Faz, agora, vinte anos, que rumei à terra dos milagres. Passei por Fátima e Cova da Iria, até chegar a Montelo, à casa da hospitaleira Ana e a Vale de Cavalos, onde uma família brasileira se refugiara de paulistanas violências e onde crianças de tenra idade aprendiam a arte equestre. 

Depois, fui até à Escola da Floresta, manifestar solidariedade e aprender com a Cátia como contrariar a pandemia infantil da “privação de natureza”, e modos de evitar catástrofes como os incêndios florestais. Decorria o mês de junho e se anunciava uma vaga de calor como nunca a Península Ibérica havia sentido. 

A Terra já ardia na vizinha Espanha. Na Pampilhosa e no interior de Portugal, retornava o receio da devastação pelo fogo, o trauma de centenas de vidas perdidas, mercê da incúria de governantes e da falência da educação que ainda se fazia. E, como se não fossem suficientes as catástrofes naturais, já se falava na proximidade de novas pragas.

“Todos nós, enquanto pais, queremos que as nossas crianças cresçam felizes e em liberdade. E este projeto dá-nos isso, porque permite que as crianças sigam os interesses delas” – comentava a Daniela, mãe e funcionária da escola da Floresta. E a Cátia dava conta do ressurgir daquela comunidade:

“Os vizinhos têm contribuído muito, têm ajudado, já doaram brinquedos, trazem fruta, acho que é uma grande alegria terem a escola reativada na aldeia”.

A Escola na Floresta procurava desenvolver competências para a vida, mediante uma aproximação equilibrada à natureza e ao mundo natural. E a Cátia já pensava em alargar o projeto ao 1º ciclo, mediante a aprovação deste modelo. A associação ouriense integrava o Movimento Aprendizagem ao Ar Livre, que elaborara um manifesto para entregar ao ministério, de modo a que houvesse reconhecimento oficial desse modelo educativo, através da revisão da legislação. 

Esse movimento já tinha dimensão nacional, englobava escolas similares de todo o país e contava com o apoio de especialistas em desenvolvimento infantil. Juntar-se-ia a outras iniciativas, que viriam a implantar-se no ano seguinte. 

A Ana empenhava-se no “casamentar” vontades, que dariam forma ao projeto e assim dizia:

“Espero que este modelo se expanda rapidamente, porque o ensino está podre. A escola não cresce com as crianças, não se adapta. Mantém–se exatamente como há cem anos. Não entendo! Vejo a minha filha, que frequentou a pré particular com este modelo de ensino e foi muito feliz, entrar para o 1° ciclo público e não ser a mesma criança”.

No seu primeiro ano letivo, a Associação Escola na Floresta se estabeleceu na antiga escola primária do Vale Travesso, cedida pelo município de Ourém, e realizava a sua atividade nos campos em redor. O pátio da antiga primária se encheu de tendas e brinquedos. A aldeia da freguesia de Nossa Senhora da Piedade voltava a ouvir os risos da infância. 

Nas aldeias do interior beirão, por onde eu tinha passado, meses antes, já não havia crianças. Alguns anos atrás, o ministério havia mandado encerrar escolas com menos de vinte alunos. E essa medida de política educacional contribuiu para destruir comunidades inteiras. 

 

Por: José Pacheco

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