Horta Bonita, 23 de junho de 2042
No Algarve do junho de há vinte anos, um encontro me marcou profundamente. Acolhi a surpresa do reencontro com a Rita, neta do amigo Armindo e ex-aluna da Ponte. Enquanto a escutava, vi como as minhas andanças faziam sentido. E como fizera sentido ter escrito um livrinho com o título “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”.
A Ritinha fazia parte de uma nova geração. A ela estava confiada a concretização de uma utopia. Era como se um gene cultural remissivo se manifestasse. Tudo fazia sentido.
Estava perto do fim mais um périplo lusitano. Preparando nova viagem ao Brasil, encontrei uns papéis com anotações sobre a origem remota da Escola Nova brasileira. Mais de um século não fora tempo suficiente para dar corpo, no Brasil, aos ideais de Louise Michel, ou Francisco Ferrer. E, quando descrevia a professores a obra de Alessandro Cerchiari, apercebi-me de que nenhum deles ouvira falar do insigne pedagogo, nem da Escola Libertária Germinal, fundada em São Paulo, em 1902.
Apesar de malogrado o seu intento, o escolanovista Alessandro emprestou o seu nome a uma rua de São Paulo. Mas, os que nela moravam não sabiam quem fora esse personagem do drama educacional. Num breve inquérito de rua, apenas um transeunte ensaiou umaa resposta:
“Alessandro? Isso é nome de jogador de futebol. Não é?”
Em novembro de1904, Alessandro lançava um derradeiro apelo:
“A praticabilidade e a rapidez dos métodos aplicados nesta escola souberam despertar tantos interesses e tantas simpatias, um bom núcleo sempre crescente de homens de boa vontade (…) Pensai no futuro de vossos filhos!”
Ao que parece, a população do Bom Retiro não se preocupava com a educação dos seus filhos. Nem parecia que se importasse, quando, no século XXI, os submetiam à nefasta influência de práticas sociais denunciadas ao longo de um século pródigo em alternativas.
Na Germinal de 1902, os pais intervinham na arrecadação de fundos e na gestão do projeto. Como explicar que, decorrido mais de um século, os teóricos continuassem a produzir teses sobre a relação escola-família, enquanto as famílias continuavam marginais à vida nas escolas?
Havia um pacto de silêncio em torno de iniciativas como a do Círculo Educativo Libertário Germinal, da Universidade Popular de Ensino Livre, da Escola Moderna de São Paulo e de Bauru. Quem ouvira falar da Escola Germinal do Ceará, da Escola Social de Campinas, da Escola Operária da Vila Isabel e da Escola Moderna de Petrópolis?
Por que razão as faculdades de educação não informavam os futuros professores de Porto Alegre de que, em 1906, havia por lá uma escola com o nome de Elisée Reclus? Por que ostentavam as escolas brasileiras designações com referência a ditadores e torcionários?
Uma professora deteve-se em frente à sua nova escola. O que a impedia de entrar? A blindagem do portão? A catraca? O carrancudo guarda? Não! Aquilo que a fez parar foi a leitura da placa, que indicava o nome da escola. Era o nome de quem, durante a ditadura, havia torturado e matado o seu pai.
Nos idos de vinte, ainda havia escolas que celebravam a morte da memória e onde ainda pesava uma herança colonialista. Tal como o país, a escola estava imersa numa profunda crise ética e moral, ao serviço da reprodução de uma sociedade doente.
Netos queridos, sei que será difícil acreditar, mas vos asseguro que isto li num muro de uma cidade brasileira:
“Colégio D. – a seleção natural”.
Não restavam dúvidas de que, mais de uma centena de anos decorrida sobre as primeiras tentativas de humanizar a escola, nos mantínhamos na proto-história da humanidade.
Por: José Pacheco
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