Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXIV)

Covilhã, 3 de julho de 2042

Como sabeis, eu vivia de escutar e de fazer perguntas. Tinha aprendido, desde cedo, que não deveria planificar a vida dos meus alunos ou das “minhas turmas”, mas de ajudar cada ser humano a planificar a sua vida, a compor o seu projeto de vida.

Ensinava-o – era disso que se tratava: de aproveitar as aulas – para que aprendesse a gerir tempos e espaços, autonomamente. Isto é: com os outros, sabendo articular o seu tempo com o dos companheiros de estudo. Também os ensinava a procurar espaços de aprendizagem, onde pudessem usufruir do acesso à informação de que necessitavam. 

Para que aproveitassem devidamente o conteúdo de um livro, ensinava-os a consultar o índice de um livro, a saber utilizar o índice onomástico ou didascálico de uma biblioteca. Para que não se perdessem no manancial de informação da Internet, ajudava-os a desenvolver processos complexos de pensamento, o pensar sobre o pensar. Uma metacognição que passava por os habilitar a selecionar informação pertinente, a analisá-la, a criticá-la, a compará-la com outras informações, com o filtro do senso crítico, que lhes permitisse escapar de fakenews. Depois de muito porfiar, acabava por conseguir que avaliassem, sintetizassem, comunicassem o saber por eles (e por mim, claro!) construído. 

Os jovens não consumiam o currículo dos livros didáticos, produziam currículo. E partilhavam o conhecimento produzido com outros aprendizes interessados em produzir e partilhar evidências de aprendizagem. A isso se chamava avaliação, a partilha do saber, a transformação do saber numa ação, a produção de “competências”.

Perdoai que vos dê a ler este arrazoado de educador invocador da memória da sua transição de docente ministrador de aula para a de professor-tutor organizador e avaliador de processos de aprendizagem. Essa condição gerava situações caricatas, a começar por aquela que, frequentemente, vivi, quando entrava no palco de um congresso e perguntava: 

“O que quereis saber?”.

Não desistia, quando isso perguntava e um jovem respondia:

“Eu posso dizer o que quero saber?”. 

Insistia no perguntar. Apesar de já lhe terem proibido de fazer perguntas, apesar de alguém lhe ter matado a natural curiosidade, eu sabia que, lá no fundo de um ser conformado, ainda haveria uma centelha de vontade de aprender o mundo e de se aprender.

Vem isto a propósito de uma ida à Covilhã, no início do julho de há vinte anos. Na “MANiFesta”, reencontrei o amigo Adelino, o amigo Filipe e outros companheiros de jornada.  Encontrei a Célia, extraordinária organizadora de um evento com um ambiente propício a uma proveitosa troca de saberes. 

Em próximas missivas, vos falarei do alcance dessa iniciativa e da “Declaração da Covilhã”. Nesta cartinha, quedar-me-ei por um comentário introdutor das perguntas de um “roteiro de estudo” proposto aos colegas de uma Mesa de Debate, a que a Célia e os seus companheiros e companheiras da “ANIMAR” assim designaram: “Desenvolvimento Local e Comunidade de Aprendizagem para a Educação! uma Outra Educação é Possível?”

A minha proposta foi a de fazer perguntas, quase um “trabalho de casa” incluído num convite para participação num projeto, a começar no setembro de vinte e dois e que marcaria uma mudança definitiva, quase uma mutação genética do “sistema”.

Durante o tempo daquele debate, não esperaria respostas “definitivas”, antes aspirava a que aqueles minutos se constituíssem no iniciar de um longo e frutuoso debate. 

Precisaríamos de chegar a conclusões, evidentemente! Mas, naquele tempo, eram mais urgentes as interrogações.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXIII)

Zambujeira do Mar, 2 de julho de 2042

Volto a falar-vos de pedagogos, cuja memória foi violentada. Desta vez, em referência a uma mulher. Nos idos de vinte, quando se listava nomes de eminentes pedagogos (numa profissão eminentemente feminina), apenas Maria Montessori e Emília Ferrero surgiam ao lado de dezenas de masculinos nomes. Mas, foi um homem, o Drummond, quem sobre a Helena Antipoff escreveu: 

Russa mais mineira não há, na assimilação plena de valores e características da gente mineira, em harmonia com o fundo eslavo que se abre para o sentimento do mundo sem distinguir limitações convencionais, e quer abarcar no mesmo amor todos os seres carentes de proteção e compreensão

Belo e perfeito retrato de quem soube exercer o seu múnus profissional com razão e sensibilidade. Toda a sua vida foi dedicada ao aprofundamento dos saberes da psicologia, que soube harmonizar com os saberes da cultura popular, numa vida comprometida com a convivência democrática, que tardava a entrar nas escolas. Falar de democracia era mera retórica

O “país do futuro” submetia-se a uma modernização tardia, numa sociedade da informação caraterizada pela solidão e pelo individualismo. As escolas enfeitavam-se de novas tecnologias, sem que fosse afetado o modelo de ensino obsoleto, que denodadamente, Helena combateu. As propostas pedagógicas elaboradas no decurso do século XX jamais foram vertidas em práticas efetivas. As escolas das cidades mineiras onde Helena viveu ignoravam os seus contributos e até a sua existência. Pouca serventia teve a sua preocupação com a exclusão social e a sua crença nas virtudes da psicologia na democratização da sociedade brasileira. 

Não se pense que fui ou sou pessimista. Tento sempre ver o “copo meio cheio”. Por isso, vos digo que, tendo eu vivido três anos em terras de Minas Gerais, esse tempo foi suficiente para, no chão de escolas, encontrar educadores partilhando os ideais da Helena. Dirão que são poucos, mas eu direi que são os imprescindíveis, pois buscam contemplar o direito de todos à educação, como a Helena propunha que se fizesse, no espírito da escolanovismo e do seu mestre Claparède: a “escola sob medida”.

A sua confiança na contribuição da ciência para a educação de crianças consideradas especiais esteve na origem da fundação da Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte, obra de uma comunidade de médicos, educadores e religiosos. Isso mesmo! De uma comunidade se tratava, unida pelo sonho de a inclusão não ser miragem e de que se passasse do sonho à sua concretização. Surpreende a maturidade desse projeto, a consciência de que a educação é ato político e de que a inclusão é exercício de direitos humanos! 

Na comunidade científica, que a Helena ajudou a criar, na década de 1930, acontecia inovação, enquanto, nos idos de vinte, certas propostas de comunidade de aprendizagem incorressem na cedência a práticas tradicionais. Estabeleciam, por exemplo, que todos os alunos conseguissem “realizar a atividade e compreender os conteúdos trabalhados em um tempo determinado”, um tempo determinado igual para todos. Porquê o padrão único de tempo? Estariam a falar de aprendizagem, ou de ensinagem?

A catástrofe anunciada pelo aumento de quatro graus na temperatura da Terra era mais uma prova da inutilidade do instrucionismo. Não era somente a velha escola que continuava em crise, era a vida que estava por um fio. Propostas pedagógicas elaboradas no decurso do século XX continuavam no limbo das teses, legitimando práticas incoerentes. E eu chegava a ter vergonha da minha mania de tentar ser coerente.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXII)

Vila do Bispo, 1 de julho de 2042

Há cerca de vinte anos, andava por terras do extremo sudoeste português, quando me pediram que fosse ouvido como testemunha, num processo movido pela inspeção de ensino a uma associação local. Era mais uma manifestação com resquícios da prepotência herdada do velho regime e entranhada no íntimo de agentes e funcionários ministeriais desse tempo. 

A reunião não decorreu em “campo neutro”. Fui convocado para reunir numa sala da instituição denunciante. Isso mesmo: tratava-se de um processo decorrente de uma denúncia. Senti-me voltando aos idos de setenta e aos inquéritos, aos processos de averiguação e auditorias. 

Era raro o mês em que o vosso avô e jovem professor não recebesse a “visita” de inspetores. As denúncias era sempre “anónimas”, mas eu sabia que tinham sido feitas por professores de outras escolas, os mesmos que, aliados a políticos sem escrúpulos, muito prejudicaram a Escola da Ponte. 

Ora era porque não tínhamos livro de ponto, ora porque não dávamos aula, ora… tudo servia para nos fazer perder tempo e paciência. Os inspetores chegavam sisudos e severos, ordenavam que lhes que apresentássemos os testes que tínhamos aplicado, que lhes facultássemos o livro de registo de presenças dos alunos e das faltas que tivessem dado (às aulas), as “planificações” (os planos de aula) e outras “minudências”.

Dizíamos-lhes que não marcávamos faltas aos alunos porque nunca faltavam. Mostrávamos que o teste era o instrumento de avaliação mais falível de quantos pudéssemos servir-nos e esclarecíamos que os substituíramos por “evidências de aprendizagem”. Mostrávamos-lhes os projetos e os planos de sujeitos de aprendizagem. Nem para eles olhavam. Os inspetores determinavam que lhes mostrássemos as planificações e nós não as tínhamos para mostrar. Autoritários, exigiam que os mostrássemos, porque era “o que estava na lei”.

“Qual lei?” – perguntávamos. E explicávamos de modo simplificado o que aqueles inspetores deveriam saber e não sabiam acerca de Montessori, Freinet, Dewey, Steiner, Vigotsky, Piaget, Agostinho, Freire… Os inspetores faziam ouvidos de mercador. Dizíamos-lhes que as leis obedeciam a princípios de ordem moral e que deveriam ter fundamento científico. 

Dado que a Lei de Bases só surgiria em meados da década de oitenta, os inspetores replicavam:

“Isso não interessa! Sou seu superior hierárquico! – E ordenavam que obedecêssemos, que voltássemos a fazer planificações, a dar aula, a aplicar testes. Enfim! Os inspetores voltavam para o ministério e nós voltávamos para a nossa prática sem planificações de professor, sem testes ou registo de faltas, numa prática feita de efetiva aprendizagem.

Quarenta anos decorridos, fui convocado como testemunha de um processo. Um amigo me disse que a Inspeção não era como antigamente, que havia mudado. Efetivamente, o computador substituía a folha de papel e a caneta de tinta permanente. 

A senhora inspetora era afável e não se apresentou como “superiora hierárquica”. Nenhum poder detinha perante um professor aposentado e, não por acaso, formado em ciências da educação. Respeitosamente, demonstrei a inutilidade daquele “auto de inquirição”. Apontei equívocos, contradições, erros contidos no processo. Surpreendida, sem saber o que responder, a senhora inspetora alegou que, como funcionária, apenas cumpria “ordens superiores”.

No julgamento de Nuremberg, os militares hitlerianos assumiam a autoria dos crimes de que eram acusados, alegando que estavam “apenas seguindo ordens de autoridades superiores”. 

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2
Scroll to top