Carias, 20 de julho de 2042
Um dia, há muito tempo, escrevi uma cartinha para o amigo Florestan. Poderia parecer inverossímil aquilo que lhe iria contar, mas era a mais pura verdade. Um Governador de Estado inaugurara uma escola construída no “Padrão Século XXI” (sic). Pouco tempo após a pompa e circunstância da inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) escola modelo. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida. A diretora disse que “o rapaz tinha comportamento normal e boas notas”.
O colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde esses alunos estudavam. Um serralheiro colocaria as placas em volta da escola, “mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”. A Polícia Militar ficaria na porta da escola, até que o projeto de segurança fosse implantado.
Culminando a insana sequência de fatos, “a escola, que era pública, se tornou uma instituição militar”. Famílias e governo comemoraram “o plano de recuperação da qualidade da escola”, crentes de que se poderia acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna.
Tirei o Florestan do seu etéreo sossego, porque, como deputado federal, se batera pela melhoria da escola pública. A morte o impedira de votar a nova lei. Darcy e poucos levantaram a sua bandeira, com as cedências que conferiram aos legalistas e burocratas argumento para adiar a concretização de justas disposições.
Mal grado os avanços que a lei consentira, nos idos de vinte, a escola continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites. Mas, eis que chegavam tempos novos e educadores com instrumentos de emancipação.
Enviei uma cartinha ao Florestan, porque sentia uma quase veneração pela sua obra e pela sua vida. A sua origem humilde moldou o teu caráter. Foi filho de mãe imigrante e analfabeta e começou a trabalhar como engraxate aos seis anos de idade. Forçado a abandonar a escola aos nove anos, fez as primeiras aprendizagens sociológicas na escola da vida. Mas, nunca deixou de acreditar que a educação poderia ser uma experiência transformadora e que as escolas deveriam formar “um sistema comunitário”.
Quem dera que os educadores brasileiros se orgulhassem do seu exemplo e se opusessem a políticas públicas pedagogicamente desastrosas. Que fossem aquilo que Florestan dizia dever ser um professor: “um cidadão e um ser humano rebelde”.
Com Roger Bastide, Florestan desenvolveu um profundo estudo sobre o negro e o preconceito racial. Daí passou para pesquisas sobre a urbanização, a industrialização e a nova estrutura de classes em construção no Brasil.
Outros mestres desenvolveram estudos afins, num diálogo profícuo entre a sociologia, a história, a ciência política, a antropologia, em cujo campo sobressaía a obra de Eunice Dhuran. Lado a lado com Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes, Eunice participou na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
No julho de há vinte anos, Eunice Ribeiro Dhuran faleceu. Quantos professores saberiam do infauto acontecimento? Quantos professores conheceriam a sua análise do sistema educacional? Quantos professores teriam lido a sua obra e a do Florestan?
Em meados do século XX, o Mestre Florestan criticava a prática em sala de aula, a concepção do professor como transmissor do saber e a hierarquização da gestão. Talvez por que aos professores tivese faltado tempo para se inteirar do que o Mestre escrevera, permaneciam na solidão da sala de aula… no julho de vinte e dois.
Por: José Pacheco
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