Freixo do Meio, 21 de julho de 2042
Voltei a remexer o baú das vleharias e encontrei a fotografia, que junto a esta cartinha.
Quando entrávamos na ágora do Freixo, sobre as prateleiras de uma biblioteca, Agostinho nos fitava. E nos sentíamos pequenos perante aquele olhar, inaptos educadores incapazes de concretizar o que o Mestre propunha.
Naquele tempo, já seria possível passar do consumo de currículo à produção crítica de conhecimento e à sua fruição, gerando embriões de uma democracia digital solidária. As tecnologias digitais poderiam ser colocadas ao serviço da humanização da escola, mas apenas serviam para a mercantilização da escola pública.
A Escola permanecia parada no tempo, constituía-se em obstáculo a um desenvolvimento humano sustentável, ignorando que os contributos das neurociências e a emergência da Web 4.0 prefiguravam mais do que uma revolução tecnológica: uma revolução social e cultural.
Quando tocava a sirene anunciadora do intervalo das aulas, os jovens corriam para os seus telemóveis, sentavam-se no chão, alheados de tudo o que os rodeava. Enquando o “toque de entrada” não soava, os corredores das escolas eram arquipélagos de solidões. A relação com a tecnologia substituía os espaços dos afetos, das relações onde se poderia estabelecer o sentido de uma nova humanidade.
A Lei de Bases dizia-nos que a educação, dever da família, da sociedade e do Estado (através da escola), inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tinha por finalidade o pleno desenvolvimento do educando e o seu preparo para um exercício pleno de cidadania. Também dizia ser dever do Estado garantir a educação de todos. E eu me questionava:
Quanto tempo mais demorariam os professores, as escolas e os donos do “sistema” a compreender que a escola que (desgraçadamente) ainda tínhamos não conseguiria atingir tais desideratos?
Quanto tempo decorreria ainda, até que se apercebessem da necessidade de assumir múltiplas e urgentes medidas, como a de interpelar o modelo hierárquico de relação, de modo a propiciar uma relação comunicativa, e de conceder dignidade ao exercício da profissão de educador?
Ontem, vos falei da Eunice. Hoje, quando caminhava, meditando sobre o sem sentido da escola, outra extraordinária educadora me veio à mente (ou seria ao coração?). Na década de 1970, Maria Nilde implantara um programa para mulheres de baixa renda, nas favelas de São Paulo. Essa e outras iniciativas dotaram-na de uma formação experiencial que desembocou numa extraordinária tese de doutorado. Cinquenta anos decorridos, os seus colegas universitários esbanjadores de vã erudição nada tinham acrescentado, nada haviam contribuído para ajudar a escola a libertar-se do marasmo instrucionista.
Os teoricistas habitavam um sétimo céu, muito acima do submundo do comum dos mortais. E, entre a retórica dos teoricistas e o glamour de congressos e teses, pouco, ou mesmo nada mudara, desde então. Continuávamos à mercê das diatribes dos novos governantes, e dos maus tratos dos áulicos.
A morte levaria Nilde, no último ano do século passado. Mas, ainda viveria tempo suficiente para escutar a confissão do Mestre Darcy:
“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Também escutara o seu repto:
“Tudo o que eu não consegui fazer ficam vocês encarregados de realizar. Mas façam!”
Por: José Pacheco
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