Brasília, 17 de agosto de 2042
A primeira crise profissional fora de natureza moral. A segunda eclodiu, quando deparei com uma “turma de lixo”. Era assim denominada uma turma “homogénea” constituída por jovens com quinze anos de idade. Os professores dessa escola (se de professores pudéssemos alcunhá-los) chamavam lixo a esses seres humanos.
Aqueles jovens não sabiam ler. Por via de analfabetismo crónico, tinham reprovado seis vezes na primeira classe. Os professores dos anos anteriores tinham-nos “ensinado” com a mesma metodologia que eu sabia ensinar. Era a única que eu conhecia, aquela que os meus predecessores conheciam, o “analítico-sintético”, ou “fónico”.
Eu me questionava: se tentasse ensiná-los pelo mesmo “método”, aqueles jovens iriam aprender? Era evidente que não iriam aprender a ler. Se eu insistisse no que dera errado em anos anteriores, eles permaneceriam tão analfabetos como antes. Restavam dois caminhos: modificar o meu modo de alfabetizar, ou… deixar de ser professor.
Fui mais fundo na reflexão, imaginando situações semelhantes.
Por exemplo: coloquemo-nos da situação de um médico do século XXI, que apenas possuísse conhecimentos da Medicina praticada no século XIX. Esse médico teria consciência de que, utilizando ciência e instrumentos do século XIX, condenaria à morte metade dos pacientes. Não usaria recursos obsoletos. Se os utilizasse, seria um crápula. Não só porque fizera o Juramento de Hipócrates, mas numa decisão ética, o médico se atualizaria, estudaria Medicina do século XXI.
Quando me deparei com vítimas (não com doentes) de analfabetismo, optei por resolver o dilema. Eu seria antiético, se continuasse a ensiná-los do modo como tinham sido “ensinados” durante seis anos. Fui aprender outros modos de ensinar.
Na busca de outras metodologias, encontrei os “métodos globais” de palavras, frases, contos e o método natural de Freinet. Pelo caminho, estudei os fonomínmicos, os fonossintéticos, os silábicos, os mistos, o freiriano “tu já lê”, o das “28 palavras” etc. etc.
Apercebi-me de que aqueles jovens sabiam ler palavras como “Coca-Cola”. Sabiam ler palavras em português, em inglês e até em japonês: “Toyota”. Parti do repertório linguístico de cada jovem, de palavras “significativas”. E daí para a sílaba, da sílaba para a letra e para a ordem alfabética, que permitia consultar um dicionário.
Estávamos no início dos anos setenta. A Emília Ferrero ainda não tinha iniciado os seus estudos. Mas, intuitivamente, identifiquei estilos de inteligência e a lateralidade predominante de cada jovem. Repeti a palavra “cada”, porque também consegui respeitar o ritmo de aprendizagem de cada qual. Em outra cartinha, vos direi como consegui.
Durante seis anos, os jovens analfabetos desta estória tinham entrado em salas de aula, onde professores “ensinavam” todos do mesmo modo, quando cada jovem requeria diferentes modos; ao mesmo tempo, quando cada jovem tinha ritmo diferente de outros jovens; sem atender a estilos de inteligência, ou à lateralidade predominante. Compreendi por que a maioria dos auditórios onde “palestrei” tinham apoios de braço só para destros… os canhotos eram minoria.
Quando me dediquei ao estudo da Psicologia da Linguagem, novas portas de compreensão se abriram. Quando estudei Psicologia da Cognição, compreendi como a criança hierarquizava conceitos. Quando abordei a da Memória… enfim! Ainda hoje estudo e me estudo. Afinal, foi através do estudo que aqueles jovens se emanciparam. É através do estudo que os professores se emancipam. Ou não será assim?
Por: José Pacheco
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