Jardim Botânico de Brasília, 18 de agosto de 2042
No agosto de vinte, voltei a Brasília, para conversar com secretários de educação e rever educadores amigos com quem convivera e trabalhara no chão da escola. O Sandro era um deles. Em Brasília vivera anos de felicidade, outros de profundo desgosto. Adoentado, partiu para outras paragens.
O professor perfumava a sala de aula com o som dos “clássicos”, enquanto inventava formas de enganar a fome que roubava as forças dos seus alunos e os levava a adormecer durante as aulas.
“Ó Professor, o Tiago está a dormir! Isso é mesmo música para dormir!”
O professor Sandro não se deixava abater. As “Quatro Estações” repetidamente afagaram os empedernidos ouvidos dos alunos, até ao dia em que uma zelosa funcionária de limpeza resolveu passar o pano do pó sobre o disco de vinil. A agulha rasgou um novo e profundo sulco no disco, que calou para sempre o Vivaldi.
Em abono da verdade se diga que para sempre não foi. O silêncio foi de curta duração. Certo dia, no tempo de trabalho em grupo, o professor viu, num canto da sala, três alunos (entre os quais, o nosso Tiago), de olhos fechados e mãos dadas, balanceando as cabeças. Aproximou-se a tempo de os ouvir trauteando o segundo andamento do concerto de Inverno das “Quatro Estações”.
Se houve dias em que as lágrimas irromperam súbitas e jubilosas, esse foi um deles. Esse professor viveu muitos momentos assim, momentos em que a emoção impelia a procurar um espaço de intimidade, para que as lágrimas fluíssem cálidas e livres, e fossem a humana expressão do divino.
Nos primeiros alvores da Primavera, as janelas da sala de aula abriam-se ao alarido dos pássaros e aos sussurros da brisa, que agitava o verde da folhagem e que levava os ramos a afagar os vidros – “Gracias a la vida, merci l’existence, pour ces yeux que j’ouvre, quand le jour commence”.
A azáfama dos pássaros nos ramos das árvores e a das crianças eram acompanhadas de cânticos matinais, para agradecer à vida todas as cores que todo o dia tem. Cânticos de entardecer, de gratidão pelo amor partilhado, que não se explica, mas se vive.
O Tiago abandonou os estudos no fim da primária. Levou consigo para uma vida de trabalho duro o que o professor conseguira ensinar-lhe nos intervalos das sonecas. E levou o gosto pela música dita erudita, ainda que, no pobre bairro, os companheiros de miséria se rissem das estranhas melodias que ele assobiava.
O professor desta história já se havia aposentado. Certo dia, no fim de um dos seus passeios matinais (os velhos acordam com os pássaros), os seus olhos fixaram-se nuns olhos que lhe sorriam.
“O professor não me está a reconhecer, pois não?”
Não, não estava. Naquele homem de barba hirsuta somente reconhecia o olhar. Era-lhe bem familiar. Mas de onde?…
“Sou eu, o Sandro, professor. Não se lembra de mim?”
O professor poderia lá esquecer-se do aluno que adormecia de fome.
“Então, que é feito de ti?”
“Trabalho e estudo, professor. E estou a acabar Engenharia.”
“Gracias a la vida, pour le chant des peuples qui brisent leurs chaînes” – O Sandro havia contrariado o fatalismo da miséria.
Por ali ficaram, conversando sobre dificuldades e alegrias, até que abalaram, cada qual para seu destino. O Sandro despediu-se, com a promessa de reencontro para breve:
“Não me esquecerei de lhe trazer um Rigoletto que tenho lá em casa. É com a Callas e Gobbi. O professor vai gostar de ouvir.”
(As expressões em francês são versos de uma canção de Herbert Pagani. Se ainda houvesse Youtube, poderíeis escutá-lo cantando Violeta Parra, neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=0YfnxRQF2xc)
Por: José Pacheco
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